DESMASCARANDO OS LIVROS APÓCRIFOS (P1)

DESMASCARANDO OS LIVROS APÓCRIFOS (PARTE 1) 
 
“Que evite todos os escritos apócrifos, e se for levado a lê-los não pela verdade das doutrinas que contêm, mas por respeito aos milagres contidos neles, que entenda que não são escritos por aqueles a quem são atribuídos, que muitos elementos defeituosos se introduziram neles, e que requer uma perícia infinita achar ouro no meio da sujeira” (Jerônimo)
 
Vou ser bem claro e direto neste presente artigo. Não pretendo me alongar demasiadamente, apenas pretendo responder objetivamente a pergunta: Foi Lutero que retirou sete livros da Bíblia, ou foi o Concílio de Trento que acrescentou os sete livros? Os católicos esbravejam aos quatro cantos da terra que Lutero “rasgou” os sete livros da Bíblia, e quando entram em um debate sobre o cânon bíblico, repetem essa frase a exaustão, embora não saibam sequer argumentar em favor dela.
 
Por outro lado, nós, cristãos, estamos convictos de que foi o Concílio de Trento quem, em resposta à Reforma Protestante, acrescentou os sete livros colocando-os em pé de igualdade com os 66 livros canônicos, algo que não aconteceu senão depois de não menos que dezesseis séculos! Portanto, se você quer um jeito mais fácil, prático e objetivo de saber se os livros apócrifos são apócrifos mesmo ou se são canônicos, basta simplesmente termos a resposta para a pergunta acima.
 
Se a resposta para essas questões for que estes sete livros considerados apócrifos – 1 e 2 Macabeus, Judite, Tobias, Eclesiástico, Sabedoria e Baruque – já eram desde muito tempo antes de Lutero considerados Escritura Sagrada e inspirada, assim crido por todos os Pais da Igreja e pelos próprios doutores da Igreja de séculos posteriores, aí terei que admitir que foi Lutero quem tirou estes livros da Bíblia, e renunciarei a grande parte de todo o conteúdo do site que eu já escrevi contra o Catolicismo.
 
Se, porém, for demonstrado que estes sete livros não eram considerados pela maioria dos Pais da Igreja como Escritura Sagrada e inspirada, mas era apenas lida na Igreja para uso eclesiástico, e que ainda por cima os próprios doutores e clérigos da Igreja Católica negaram a canonicidade de tais livros, então o sepulcro já estará cavado para tais livros e será demonstrado o óbvio: que os católicos acrescentaram sete livros à Bíblia com a finalidade de darem subsídio às suas falsas doutrinas que eram vigorosamente refutadas pela Escritura canônica.
 
Portanto, para respondermos tudo isso, iremos primeiramente aos escritos dos Pais da Igreja primitiva, provando que eles não criam na canonicidade dos sete livros no mesmo grau de igualdade com os demais. Como são inumeráveis os Pais da Igreja que rejeitavam a canonicidade dos apócrifos, então irei dividir a presente parte do estudo em dois artigos, sendo este o primeiro.
 
Em seguida, escreverei um outro artigo, provando que até mesmo os próprios doutores da Igreja Católica (posteriores aos Pais da Igreja) continuaram desacreditando na credibilidade de tais livros, e, por fim, refutarei as objeções católicas mais comumente enfrentadas. Prepare-se, agora, para o maior compêndio e arsenal de citações patrísticas contra os apócrifos que existe em toda a internet.
 
 
-Os Pais da Igreja rejeitavam os Apócrifos
 
Iremos analisar um por um de cada um deles que falaram do assunto do cânon bíblico, inclusive com aqueles que os católicos afirmam que apoiaram o cânon de 73 livros, por ordem cronológica.
 
-Militão de Sardes (†177)
 
Começaremos com Militão, bispo de Sardes (†177), um autor que morreu no século II da era cristã e que teve alguns de seus escritos conservados por Eusébio de Cesaréia, em sua obra “História Eclesiástica”. Sobre a posição de Militão sobre o tema, este diz:
 
E nos Extratos por ele escritos, o mesmo Militão, ao começar, faz no prólogo um catálogo dos escritos admitidos do Antigo Testamento, catálogo que é necessário enumerar aqui. Escreve assim:Militão a seu irmão Onésimo: Saúde. Visto que muitas vezes, valendo-te de teu zelo pela doutrina, tens pedido para ti extratos da lei e dos profetas, sobre o Salvador e toda a nossa fé; mais ainda, já que quiseste saber dos livros antigos com toda exatidão quantos são em número e qual é sua ordem, pus minha diligência em fazê-lo, sabendo de teu ardor pela fé e teu afã de saber sobre a doutrina, já que em tua luta pela salvação eterna e em tua ânsia por Deus, preferes isto mais do que tudo. Assim pois, tendo subido ao Oriente e chegado até o lugar em que se proclamou e se realizou, informei-me com exatidão dos livros do Antigo Testamento. Ordenei-os e envio-os a ti. Seus nomes são: cinco de Moisés: Gênesis, Êxodo, Números, Levítico, Deuteronômio; Jesus de Navé, Juízes, Rute; quatro dos Reis, dois dos Paralipômenos; Salmos de Davi; Provérbios de Salomão, também chamado Sabedoria, Eclesiastes, Cantar dos Cantares, Jó; dos profetas, Isaías, Jeremias, os doze em um só livro, Daniel, Ezequiel; Esdras. Destes livros tirei os Extratos, que dividi em seis livros’. E é isto que há de Militão” (Conservado por Eusébio em História Eclesiástica, Livro IV, Cap.26, v.12-14)
 
Militão de Sardes cita os livros canônicos do Antigo Testamento, mas deixa de fora absolutamente todos os apócrifos! Ora, este foi o primeiro escritor cristão a tratar do assunto do cânon bíblico do AT em sua ordem exata, e ele deixa de fora todos os livros, sem exceção, daqueles que os católicos chamam de “deuterocanônicos”.
 
Note, ainda, que Militão escreve ao seu irmão Onésimo que queria saber dos livros antigos “com toda exatidão”. Se Militão passou os livros do AT com exatidão, então seria inaceitável que ele simplesmente “se esquecesse” de mencionar bem exatamente os sete livros apócrifos que os católicos colocaram na Bíblia deles, pois Militão faria questão de colocá-los na lista caso eles realmente fossem considerados canônicos pela Igreja!
 
Porém, Militão não apenas exclui todos os apócrifos, como também é mencionado por Eusébio de Cesaréia, que não fez qualquer questão de dizer que Militão se “esqueceu” de algum livro, não acrescentou nenhum outro na lista e ainda disse que “é isto o que há de Militão”, deixando claro que não há nada mais do que aqueles livros no cânon referido por ele.
 
Isso deita por terra todas as pretensões católicas em seu esforço infrutífero de querer considerar os apócrifos como canônicos em pleno século II! O que vemos é a maior comprovação de que, logo no princípio do Cristianismo, os apócrifos já eram deixados da porta pra fora da Igreja em termos de canonicidade.
 
 
-Teófilo de Antioquia (120 – 180 d.C)
 
Outro autor importante do século II foi Teófilo, bispo da cidade de Antioquia, um teólogo, escritor e apologista cristão de renome em sua época. Dele temos conservados três livros que ele escreveu a Autólico, e no terceiro deles deixa de fora todos os livros apócrifos e faz menção somente aos livros e acontecimentos registrados nos livros canônicos do Antigo Testamento hebraico. Ele afirma que daria “o número de todos eles”, começando pela própria origem do mundo o – o Gênesis de Moisés, até o último dos livros do AT:
 
Daremos, no que for possível, o número de todos eles, remontando à própria origem da criação do mundo, tal como foi consignada por Moisés, servo de Deus, sob a inspiração do Espírito Santo” (Terceiro Livro a Autólico, Cap.23)
 
Depois, ele cita todos os livros e acontecimentos registrados nos livros canônicos do AT por vários capítulos da obra (o que seria demasiadamente extenso para passar aqui, mas quem quiser ler por inteiro pode conferir neste site católico, do capítulo 23 ao capítulo 28), mas não cita nenhum livro apócrifo e nenhum personagem destes livros!
 
Ele simplesmente relata toda a história do povo de Deus desde o Gênesis até a época do rei Ciro, abrangendo todo o período relatado pelos livros canônicos, mas deixando de fora a totalidade do conteúdo presente nos apócrifos.
 
Ele, ao terminar de contar os acontecimentos registrados ao longo da história antiga pelos livros canônicos (do capítulo 23 ao capítulo 25), simplesmente pula a parte contada pelos apócrifos (incluindo a história dos Macabeus, que seria relevante o suficiente para não ser deixada de fora!) e começa a fazer uma prévia da história do Império Romano como um plano de fundo histórico para a encarnação do Salvador.
 
Mas ele não cita nenhum acontecimento registrado exclusivamente pelos apócrifos e, ao terminar no capítulo 25 de contar a história bíblica abrangendo todos os livros canônicos do AT, ele afirma logo em seguida:
 
Pode-se ver, assim, como nossos livros sagrados são mais antigos e mais verdadeiros que os dos historiadores gregos, egípcios ou de outros” (Terceiro Livro a Autólico, Cap.26)
 
Em outras palavras, Teófilo faz um resumo das histórias contidas nos livros sagrados, do primeiro ao último deles, mas termina antes de começar a contar as histórias presentes no período inter-testamentário em que foram escritos os apócrifos (como I e II Macabeus, Tobias e os verdadeiros autores de Sabedoria e Eclesiástico), que deveriam ser contadas assim como os livros canônicos, se os cristãos da época realmente considerassem como Escritura Sagrada!
 
Mas Teófilo termina com o relato do profeta Zacarias, que viveu na última era de profetas:
 
“Basta o que dissemos sobre o testemunho dos fenícios e egípcios, tal como aparece nas histórias escritas sobre nossas antiguidades pelo egípcio Maneton, pelo efésio Menandro e pelo próprio, o cronista da guerra dos judeus, feita contra eles pelos romanos. Através desses antigos demonstram-se que os escritos dos outros são posteriores aos que nos foram dados por Moisés e mesmo aos dos profetas posteriores. De fato, o último dos profetas, chamado Zacarias, exerceu sua atividade no reinado de Dário.Também vemos que os legisladores editaram suas leis posteriormente. Com efeito, se se cita Sólon, o ateniense, este viveu nos tempos dos reis Ciro e Dário, contemporâneo do profeta Zacarias e até muitos anos posterior” (Terceiro Livro a Autólico, Cap.23)
 
Se Teófilo considerava Zacarias como sendo “o último dos profetas” (pois havia ministrado no último tempo dos livros do AT, sob o reinado de Dário), então ele simplesmente não reconhecia os livros apócrifos como livros proféticos, nem tampouco os “profetas” existentes naqueles livros.
 
Na visão dos primeiros cristãos, a história do Antigo Testamento registrada nas Sagradas Escrituras começa com o Gênesis de Moisés e termina na época dos reis Dário de Ciro – deixando absolutamente de lado os livros apócrifos, que nem sequer mereceram ser mencionados.
 
 
-Orígenes de Alexandria (185 – 253 d.C)
 
Orígenes foi um dos maiores Pais da Igreja que existiu e também certamente o mais polêmico. Muitas de suas obras se perderam, mas o historiador mais reconhecido da Igreja, Eusébio de Cesaréia, guardou registros históricos de seus escritos que desmontam com a tese de que Orígenes considerou os apócrifos como Escritura Sagrada e inspirada por Deus. Ele disse:
 
“Ao explicar o salmo primeiro, ele [Orígenes] faz uma exposição do catálogo das Sagradas Escrituras do Antigo Testamento, escrevendo textualmente como segue: ‘Não se pode ignorar que os livros testamentários, tal como os transmi­tiram os hebreus, são vinte e dois, tantos como o número de letras que há entre eles’. Logo, depois de algumas frases, continua dizendo:’Os vinte e dois livros, segundo os hebreus, são estes: o que entre nós se intitula Gênesis, e entre os hebreus Bresith, pelo começo do livro, que é: No princípio; Êxodo, Ouellesmoth, que significa: Estes são os nomes; Levítico, Ouikra: E chamou; Números, Ammesphekodeim; Deuteronômio, Elleaddebareim: Estas são as palavras; Jesus, filho de Navé, Josuebennoun; Juízes e Rute, para eles um só livro: Sophtein; I e II dos Reis, um só para eles: Samuel, O eleito de Deus; III e IV dos Reis, em um: Ouammelchdavid, que significa Reino de Davi; I e II dos Paralipômenos, em um: Dabreiamein, isto é: Palavras dos dias; I e II de Esdras em um: Ezra, ou seja, Ajudante; Livro dos Salmos, Spharthelleim; Provérbios de Salomão, Meloth; Eclesiastes, Koelth; Cantar dos Cantares (e não, como pensam alguns, Cantares dos cantares), Sirassireim; Isaías, Iessia; Jeremias, junto com as Lamentações e a Carta, em um: Ieremia; Daniel, Daniel; Ezequiel, Iezekiel; , Iob; Ester, Esther. E além destes estão os dos Macabeus, que são intitulados Sarbethsabanaiel’" (História Eclesiástica, Livro VI, 25:1,2)
 
Em primeiro lugar, vemos que, para Orígenes, os livros canônicos do Antigo Testamento eram 22, exatamente como transmitiram os hebreus. Ora, se Orígenes confirma que o número de livros canônicos do AT é o mesmo aceito pelos hebreus, é porque não existiam desavenças entre os judeus e a Igreja neste assunto, como pregam os católicos, querendo sempre empurrar a afirmação de que os judeus tinham sete livros a menos do que os cristãos.
 
O que bem podemos observar, não apenas através de Orígenes, mas também de muitos outros da mesma época, é que não havia conflito entre hebreus e cristãos quando o assunto em questão era o cânon do Antigo Testamento. Assim como faz Orígenes, muitos outros cristãos da época escreveram que o número de livros do AT (22) é o mesmo aceito e admitido pela Igreja. Quando Orígenes diz tal como nos transmitiram os hebreus”, ele está simplesmente a dizer que os livros aceitos pela Igreja é tal como (=igual) os aceitos pelos judeus.
 
Deve-se ressaltar que o número 22 deve-se ao fato de que os hebreus contavam os livros dos profetas menores (sem incluir nenhum apócrifo) como sendo um só, assim como Jeremias com Lamentações, os dois primeiros livros dos Reis também são listados como um só livro, o terceiro e o quarto também (eles consideravam 1 e 2 Samuel como fazendo parte do livro dos Reis), 1 e 2 Crônicas também são listados como um só livro, fazendo assim com que os livros aceitos pelos judeus eram os mesmos livros aceitos pela Igreja, sem os apócrifos.
 
Orígenes não apenas confirma este número, como também diz que não se pode ignorar que os livros testamentários, tal como os transmitiram os hebreus, são vinte e dois”. Este “não se pode ignorar” demonstra que este número de 22 livros considerados canônicos pela Igreja (e eram os mesmos aceitos pelos judeus) era algo considerado incontestável, nem sequer havia debate sobre isso! Se “não se pode ignorar” algo, é porque este algo é auto-evidente, uma coisa óbvia, que não é questionada.
 
Sendo assim, vemos que este número de 22 livros sem os apócrifos não era somente uma opinião particular de Orígenes, mas algo óbvio e aceito universalmente por toda a Igreja da época. Note também que Orígenes cita os livros dos Macabeus, mas coloca-os à parte dos demais livros, como algo separado, distinto. Ele diz que “além destes [canônicos], há também outros [livros que são lidos na Igreja] como os dos Macabeus...”.
 
Ele não contabiliza os Macabeus como parte dos 22 livros (até porque os judeus não os aceitavam), mas os coloca de lado para fazer uma clara diferenciação entre os livros que são canônicos e aqueles que simplesmente são lidos na Igreja para uso eclesiástico.
 
O fato do livro dos Macabeus – assim como os demais apócrifos – não serem contabilizados, de Orígenes ter dito que não há união de parecer entre cristãos e judeus quanto ao cânon do AT (e os judeus rejeitavam os apócrifos) e de ter mencionado os Macabeus à parte dos canônicos, demonstra que os apócrifos eram no máximo respeitados como livros lidos na Igreja, mas não como Escritura inspirada em pé de igualdade com os livros canônicos.
 
Tal distinção é feita por inúmeros autores de séculos posteriores (como veremos mais adiante), inclusive por Jerônimo, que fez questão de ressaltar que os apócrifos eram úteis para a edificação do povo, mas não para estabelecer as doutrinas da Igreja". Ou seja, embora fossem às vezes mencionados, não o eram pelo fato de serem canônicos, mas apenas pelo fato de serem lidos na Igreja, não para estabelecer doutrina, mas somente para a edificação do povo.
 
Vale ressaltar, também, que Orígenes não apenas deixa de fora, mas também nem sequer menciona os livros de Tobias, Judite, Sabedoria, Baruque e Eclesiástico. Ele não dá a menor atenção a estes livros, mostrando assim que estavam muito, mas muito longe de estarem em pé de igualdade com os livros canônicos!
 
 
-Júlio Africano (Século II – III d.C)
 
Júlio Africano foi um viajante e historiador cristão do final do século II e início do século III. Pouco se sabe sobre a sua vida e suas obras, e o pouco que temos conhecimento nos vem por meio daquilo que Eusébio conservou em “História Eclesiástica”. Nesta obra, vemos que Júlio Africano considerava a história de Susana (acrescentada no livro de Daniel) “espúria e inventada”:
 
“Também neste tempo era conhecido Africanus, o autor dos escritos intitulados Kestoi. Dele conserva-se uma Carta escrita a Orígenes, na qual se mostra em dúvida sobre se a história de Susana no livro de Daniel é espúria e inventada (História Eclesiástica, Livro VI, 31:1)
 
José Inácio de Abreu Lima (1794 – 1869) acrescenta:
 
“Ele [Júlio Africano] Ele tratou Suzana como uma fábula...” (“Duas respostas ao Sr. Conego Joaquim Pinto”, p.135)
 
Na sua carta a Orígenes, Júlio Africano afirma, entre outras coisas, que:
 
1. O livro era falso.
 
2. Era uma falsificação como uma versão mais moderna que o texto original.
 
3. O falsificador recorreu a um jogo de palavras que não existe no hebraico.
 
(Origen to Africanus, Capítulo II)
 
Para vermos um resumo das argumentações de Júlio Africano, vejamos o que o próprio Orígenes diz sobre ele:
 
“Você diz que esta parte do livro [a fábula de Susana] é falsa porque é uma composição mais moderna, e o falsificador recorre a um jogo de palavras e trocadilhos que soam mais com o grego que pode ser usado desta forma, mas não com o hebraico...” (Origen to Africanus, Cap. II)
 
Portanto, temos mais um cristão do século II que refutava da credibilidade não apenas dos livros apócrifos, como também das partes adicionadas no livro de Daniel e Ester. Posteriormente, Jerônimo, um profundo conhecedor do grego e hebraico (criador da Vulgata Latina) se utilizou do mesmo argumento de Júlio Africano para refutar a credibilidade dos acréscimos em Daniel, como sendo parte de um jogo de palavras no grego que não existe no hebraico.
 
Na verdade, o que Jerônimo fez foi aperfeiçoar o argumento de Júlio Africano, tornando-o irrefutável e liquidando com as pretensões católicas que colocar os apócrifos e seus acréscimos como parte do cânon bíblico veterotestamentário.
 
 
-Eusébio de Cesaréia (265 – 339 d.C)
 
Já vimos até aqui várias provas retiradas dos livros de Eusébio que excluem os apócrifos como Escritura Sagrada, pois este, sendo o maior historiador sobre os primeiros séculos de Cristianismo que a Igreja já teve, não se preocupou em mostrar sequer uma única lista de livros canônicos que contivessem os apócrifos, mas mostrou inúmeras listas que simplesmente deixavam os apócrifos de fora!
 
Ora, isso não pode ser algo que deva ser desprezado. Se você fosse um historiador católico-romano e cresse totalmente nos livros apócrifos como sendo canônicos, será que você mostraria a posição contrária de inúmeros Pais da Igreja, mas deixaria de fora sequer uma única menção que apóie o seu lado?
 
É claro que não. Se Eusébio cresse que os apócrifos católicos são Escritura Sagrada, teria ele certamente feito menção de alguns (ou vários) cristãos influentes dos primeiros séculos que disseram que os apócrifos são inspirados. Mas Eusébio silencia absolutamente com relação a isso! Deste fato, podemos conjecturar apenas duas coisas:
 
1. Ou Eusébio realmente não cria na inspiração dos apócrifos, e por isso só passava citações favoráveis ao outro lado.
 
2. Ou, então, Eusébio realmente não tinha qualquer citação favorável aos apócrifos para colocar na sua obra, e por isso não o fez!
 
De um jeito ou de outro, a coisa aperta para o lado dos católicos. Eles terão mais do que explicar o porquê que Eusébio faz menção constantemente de autores cristãos que rejeitavam os apócrifos: eles também terão que explicar o porquê que ele não cita nem um único favorável a eles, se, como eles dizem, a Igreja cria na autenticidade de tais livros!
 
A situação é totalmente desconcertante para os romanistas. De qualquer jeito, vamos passar mais uma citação retirada do “História Eclesiástica”, a fim de vermos se Eusébio concordava ou não com as citações que ele mesmo passava em seu livro – e que desprezavam completamente os apócrifos – ou se ele refutava tais colocações e dizia que tais autores estavam errados ao mostrarem um cânon incompleto:
 
“’Não há pois entre nós milhares de livros em desacordo e em mútua contradição, mas há sim, apenas vinte e dois livros que contêm a relação de todo o tempo e que com justiça são considerados divinos. Destes, cinco são de Moisés, e compreendem as leis e a tradição da criação do homem até a morte de Moisés. Este período abarca quase três mil anos. Desde a morte de Moisés até a de Artaxerxes, rei dos persas depois de Xerxes, os profetas posteriores a Moisés escreveram os fatos de suas épocas em treze livros. Os outros quatro contêm hinos em honra a Deus e regras de vida para os homens. Desde Artaxerxes (sucessor de Xerxes) até nossos dias, tudo tem sido registrado, mas não tem sido considerado digno de tanto crédito quanto aquilo que precedeu a esta época, visto que a sucessão dos profetas cessou. Mas a fé que depositamos em nossos próprios escritos é percebida através de nossa conduta; pois, apesar de ter-se passado tanto tempo, ninguém jamais ousou acrescentar coisa alguma a eles, nem tirar deles coisa alguma, nem alterar neles qualquer coisa que seja. Estas palavras do autor aqui apresentadas não deixarão de ser úteis(História Eclesiástica, Livro III, 10:1-6)
 
Note que Eusébio afirma que:
 
1. apenas vinte e dois livros considerados divinos. Este “apenas”, ali incluso, simplesmente liquida com as pretensões católicas de colocarem mais livros no cânon além destes 22, visto que, ao dizer apenas vinte e dois”, exclui por completo até mesmo a mera possibilidade de existirem outros considerados Escritura além destes.
 
2. Novamente, vemos que o número de livros admitidos como canônicos pelos judeus é o mesmo admitido pela Igreja cristã. Neste aspecto, não há discordância entre a Igreja e os hebreus, que também não criam na inspiração dos sete livros. Se a Igreja cresse de modo diferente dos judeus neste aspecto, Eusébio (e os demais autores cristãos) teriam simplesmente refutado tais afirmações e afirmado que a realidade era algo totalmente diferente daquilo. Mas, como vemos mais uma vez, há uma união de parecer entre judeus e cristãos quando o assunto é o cânon bíblico veterotestamentário, e não posições contrárias ou conflitantes entre si.
 
3. Eusébio, ao transcrever o texto para a sua obra, escreve reconhecendo que mais coisas foram escritas depois da época de Xerxes (quando termina o relato bíblico canônico), o que inclui, evidentemente, os livros apócrifos, mas afirma que não foi considerada digna de crédito, o que mostra claramente a diferenciação clara e completa entre os livros canônicos do AT e os apócrifos acrescentados pelo Concílio de Trento.
 
4. Mais do que isso, também é afirmado que “a sucessão dos profetas cessou depois que o cânon bíblico foi fechado na época de Xerxes. Ora, se a sucessão profética havia terminado, então os livros acrescentados pela Igreja Católica não podem ser considerados livros proféticos, e de fato o próprio livro dos Macabeus dá um atestado pleno disso contra si mesmo, dizendo:
 
“A opressão que caiu sobre Israel foi tal, que não houve igual desde o dia em que tinham desaparecido os profetas (1 Macabeus 9:27)
 
Ora, se os profetas haviam desaparecido – e o próprio autor de Macabeus reconhece este fato – então de fato não houve uma sucessão de profetas, e nenhum livro apócrifo (ou “deuterocanônico”) pode outorgar essa autoridade para si.
 
5. Finalmente, é nos dito que “ninguém jamais ousou acrescentar coisa alguma a eles, nem tirar deles coisa alguma, nem alterar neles qualquer coisa que seja”. Portanto, ninguém colocou os apócrifos no cânon depois disso e nem poderia fazê-lo, visto que a lista de 22 livros canônicos do AT (correspondente às 22 letras do alfabeto hebraico), defendidos tanto pela Igreja quanto pelos judeus, estava completa e concluída, sem a possibilidade de alguém acrescentar ou tirar algum livro.
 
Até aqui, um católico poderia ler tudo isso e tentar desmentir a força de tais argumentos utilizando-se meramente do fato de que Eusébio estava fazendo uma citação de Josefo, como se este cresse de uma forma totalmente diferente dele próprio. Antes de refutarmos tal argumento infantil, será necessário refletirmos: será mesmo que Eusébio iria colocar em seu tratado histórico eclesiástico um conteúdo totalmente herético que ele mesmo discordava? É claro que não!
 
Se esta citação fosse “herética” ou contra os “dogmas” da Igreja da época, teria sido simplesmente deixada de lado e Eusébio não teria que se preocupar com uma “bobagem” que não tem nada a ver com o pensamento da Igreja cristã da época. Mas, se a menção concorda com a visão cristã e mostra que desde cedo eles já tinham essa visão, então seria presumível que Eusébio a colocasse em seu livro.
 
Mais do que isso, se esta declaração fosse herética, então Eusébio certamente não teria perdido a oportunidade de corrigir Josefo publicamente em seu livro, explicando e até mesmo refutando esta colocação “herética” acima, como ele costumava fazer em outras oportunidades.
 
Por exemplo, Eusébio, como não cria no milênio literal descrito no Apocalipse, até descreve aquilo que Papias escreveu sobre isso, mas logo em seguida corrige esta interpretação e mostra que ela estava errada, para não confundir os seus leitores ou deixá-los sendo enganados:
 
“Entre elas, ele [Papias] diz que, depois da ressurreição dentre os mortos, haverá um milênio, e que o reino de Cristo se estabelecerá fisicamente sobre esta terra. Eu creio que Papias supõe tudo isto por haver derivado das explicações dos apóstolos, não percebendo que estes haviam-no dito figuradamente e de modo simbólico (História Eclesiástica, Livro II, 39:12)
 
Note que Eusébio, quando faz referência a uma citação muitíssimo breve acerca de algo que ele não compartilha, não perde a oportunidade de corrigir tal equívoco, ainda que este suposto erro tenha sido irrelevante ou descrito em poucas linhas!
 
Agora é só usar a cabeça para raciocinar um pouco: se Eusébio não queria que seu livro tivesse conteúdo herético e corrigia até mesmo questões mais simples e menos importantes, mostrando onde está o erro e corrigindo a declaração dita, será mesmo que ele não escreveria sequer uma única linha refutando o pensamento de Josefo, que exclui por completo as chances dos apócrifos fazerem parte do cânon?!
 
Por que, com algo que é muito mais relevante e de crucial e fundamental importância para a fé cristã, ele simplesmente não corrige nada? Sendo algo da maior importância, ainda mais se fosse uma declaração “herética” (como os católicos dizem que é), Eusébio ou não teria escrito nada, ou o mínimo que ele faria seria corrigir Josefo.
 
Mas sabem o que ele realmente fez? Ele afirmou, logo em seguida, que “...estas palavras do autor aqui apresentadas não deixarão de ser úteis”! Ora, se o conteúdo da declaração de Josefo fosse herético, anticristão, demoníaco ou simplesmente equivocado – como os católicos declaram – então as palavras dele não seriam apresentadas como sendo úteis, mas, sim, como sendo inúteis, desagradáveis, dignas de heresia e merecedoras de serem refutadas!
 
O fato de Eusébio mencionar a declaração de Josefo e “assinar embaixo”, deixando categoricamente claro que mencionou aquilo por utilidade (benefício) e não por heresia, deixa óbvio que o próprio Eusébio concordava, e não discordava da declaração feita por Josefo, e não havia nenhuma “heresia” ali para ser “refutada”, mas somente utilidades para a fé cristã!
 
Para terminar, temos também uma prova de que Eusébio, além de concordar com as afirmações de Josefo sobre o cânon do Antigo Testamento (que excluem por completo os livros apócrifos, que afirma que não houve o prosseguimento de uma sucessão de profetas e que o conteúdo presente nos deuterocanônicos não é digno de crédito como a dos livros canônicos), também rejeitava as adições feitas em cima do livro de Daniel, pois Jerônimo afirma:
 
“As histórias de Susana e deBel e o Dragão não estão contidas no hebraico... Por isso, quando traduzia Daniel muitos anos atrás, anotei essas visões com um símbolo crítico, demonstrando que não estavam incluídas no hebraico... Afinal, Orígenes, Eusébio e Apolinário e outros clérigos e mestres distintos da Grécia reconhecem que, como eu disse, essas visões não se encontram no hebraico, e portanto não são obrigados a refutar Porfírio quanto a essas porções que não exibem nenhuma autoridade de Escrituras Sagradas (Prólogo do Comentário sobre Daniel, p.15, disponível aqui para leitura)
 
Note que Jerônimo cita Eusébio como um dos "clérigos e mestres" que repudiavam as adições ao livro de Daniel como carecendo de autoridade Escriturística, e reconhecendo que as histórias de Susana e de Bel e o Dragão não constavam no original hebraico, mas em uma adição grega posterior. Portanto, Eusébio concordava com o cânon de 22 livros veterotestamentários – sem os apócrifos – e igualmente rejeitava os acréscimos gregos em cima do hebraico do livro de Daniel e Ester.
 
 
-Atanásio de Alexandria (295 – 373 d.C)
 
Atanásio foi um dos principais bispos da Igreja primitiva e exerceu uma enorme influência em sua época, defendendo, por exemplo, a divindade do nosso Senhor Jesus Cristo em frente à Ário e seus seguidores. Mas ele também não se calou quanto ao cânon bíblico. Dele temos a primeira citação completa de livros do Novo Testamento, e também temos uma lista de livros considerados canônicos do Antigo Testamento:
 
“Há, portanto, 22 Livros do Antigo Testamento, número que, pelo que ouvi, nos foram transmitidos, sendo este o número citado nas cartas entre os Hebreus, sendo sua ordem e nomes respectivamente, como se segue: Primeiro, o Gênesis. Depois, o Êxodo. Depois, o Levítico. Em seguida, Números e, por fim, o Deuteronômio. Após esses, Josué, o filho de Nun. Depois, os Juízes e Rute. Em seguida, os quatro Livros dos Reis, sendo o primeiro e o segundo listados como um livro, o terceiro e o quarto também, como um só livro. Em seguida, o primeiro e o segundo Livros das Crônicas, listados como um só livro. Depois, Esdras, sendo o primeiro e o segundo igualmente listados num só livro. Depois desses, há o Livro dos Salmos, os Provérbios, o Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos. O Livro de . Os doze Profetas são listados como um livro. Depois Isaías, um livro. Depois, Jeremias com Baruc, Lamentações e a Carta [de Jeremias], num só livro. Ezequiel e Daniel, um livro cada. Assim se constitui o Antigo Testamento” (Epístola 39, Cap.4)
 
Atanásio, portanto, cita novamente aquele número de 22 livros aceitos na Igreja como canônicos, mas deixa de fora os livros de 1 e 2 Macabeus, Tobias, Judite, Sabedoria e Eclesiástico! Como, aliás, era o costume de todos os Pais da Igreja!
 
Em outro momento, Atanásio dá uma lista de todas as Escrituras canônicas e inspiradas sem a menção de Baruque e nem tampouco de qualquer outro livro católico apócrifo que já tinham sido antes rejeitados por ele:
 
“Todas as Escrituras de nós, cristãos, são inspiradas e não inumeráveis, mas antes os livros são definidos e alistados. E são do Velho Testamento estes...” {citando os 22 livros sem menção de Baruque} – Athanas. in Synopsis, et in Lit. Festiv.
 
Mais a frente na Epístola 39, Atanásio deixa claro que os livros apócrifos – incluídos nas Bíblias dos católicos como sendo “canônicos” no mesmo livro dos demais – não foram incluídos no cânon e que servem somente para leitura, colocando-os junto com as obras apócrifas do Pastor de Hermas e do Ensinamento dos Apóstolos:
 
“Mas para maior exatidão eu adiciono isto também, escrevendo por necessidade, que há outros livros além destes que não estão incluídos no Cânon, mas apontados pelos Pais para leitura por aqueles que acabaram de se juntar a nós, e que desejam instrução na palavra celestial. A Sabedoria de Salomão, a Sabedoria de Siraque, Ester, Judite, Tobias, aquele que é chamado de o Ensino dos Apóstolos e o Pastor. Mas os primeiros, meus irmãos, são incluídos no Cânon, sendo os últimos meramente para leitura (Epístola 39, Cap.7)
 
Atanásio também declara:
 
“Além destes, porém, há outros do mesmo Velho Testamento, que não são canônicos, que somente se lê na Igreja, como a Sabedoria de Salomão (Athanas. in Synopsis, et in Lit. Festiv. – Dupin, t. 1. Pag. 180)
 
Atanásio não coloca os livros apócrifos na lista de livros admitidos como canônicos e inspirados pelo Espírito Santo, mas os menciona em separado como sendo algo que apenas pode ser lido na Igreja, não como Escritura Sagrada como os livros canônicos.
 
Ele também os coloca lado a lado de duas obras apócrifas que os católicos não têm nas suas Bíblias hoje em dia: O Pastor de Hermas e o Ensinamento dos Doze Apóstolos, obras tais que os católicos atuais não consideram canônicas nem inspiradas, mas os cristãos primitivos consideravam no mesmo nível de “inspiração” dos apócrifos que eles têm na Bíblia deles!
 
Em outras palavras, se os católicos querem incluir na Bíblia os apócrifos que eles colocaram lá porque os cristãos primitivos admitiam “apenas para a leitura”, então eles também teriam que usar de bom senso e critério aqui, incluindo também a Didaquê, o Pastor de Hermas, a epístola de Clemente aos Coríntios e várias outras obras que também eram lidas na Igreja e que eram colocadas lado a lado com os sete livros apócrifos no mesmo nível de autoridade.
 
Portanto, para usarem de dois pesos e duas medidas, ou eles colocam na Bíblia deles todos os livros que eram lidos na Igreja para edificação do povo (e neste caso teriam que ter uma Bíblia muito maior que a atual), ou então deveriam ficar somente com aqueles que eram indiscutivelmente e universalmente admitidos como Escritura Sagrada e autenticamente canônica – e excluiriam de primeira os sete livros apócrifos que o Concílio de Trento tratou de incluir na Bíblia.
 
De um jeito ou de outro, a situação dos católicos é absolutamente insustentável, pois Atanásio deixa claro que “quanto aos primeiros, foram incluídos no cânon”, mas “os últimos são apenas para leitura” e “não estão incluídos no cânon”. Ele diz que os apócrifos católicos “não são canônicos”, mas “somente se lê na Igreja”.
 
Mas os católicos atropelam isso e ainda tem a audácia de dizer que os Pais da Igreja diziam que os apócrifos estavam no cânon no mesmo nível de autoridade dos demais e que não eram apenas para leitura!
 
Isso não é simplesmente uma informação distorcida: é uma mentira, um embuste, uma farsa descaradamente inventada para iludir a mente dos próprios católicos que são forçados a acreditarem que Lutero “tirou livros da Bíblia”, pois doutra forma o povo iria abrir os olhos para a verdade e rejeitar todos estes ensinamentos pagãos ensinados por essa seita.
 
 
-Hilário de Poitiers (300 – 368 d.C)
 
Hilário de Poitiers foi um bispo da cidade de Pictavium, em Roma. Ele era, não sem razão, conhecido como o “Atanásio do Ocidente”, por defender os mesmos princípios contra os arianos. E, assim como Atanásio fazia no Oriente, Hilário defendia o cânon de vinte e dois livros no Ocidente, sem qualquer alusão a nenhum livro apócrifo incluído na Bíblia católica. Ele diz:
 
A lei do Velho Testamento é reconhecida em vinte e dois livros, de forma que eles se enquadram no número de letras hebraicas. Eles são contados de acordo com a tradição dos antigos pais, de forma que aqueles de Moisés são cinco livros; o sexto de Josué; o sétimo de Juízes e Rute; o oitavo do primeiro e segundo de Reis; o décimo dos dois livros chamados Crônicas; o décimo primeiro de Esdras (onde Neemias estava compreendido); o livro de Salmos fazendo o décimo segundo; os Provérbios de Salomão, Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos, fazendo o décimo terceiro, décimo quarto e décimo quinto; os doze profetas fazendo o décimo sexto; então Isaías e Jeremias, juntos com suas Lamentações e sua Epístola, (agora o vigésimo nono capítulo de sua profecia) Daniel, e Ezequiel, e Jó, e Ester, fazendo o número completo de vinte e dois livros”(Sancti Hilarii Pictaviensis Episcopi Tractatus Super Psalmos, Prologue 15, Testamenti Veteris libri XXII, aut 24. Tres linguae praecipuae. PL 9:241)
 
Hilário é outro que confirma o cânon do Velho Testamento de vinte e dois livros, e ressalta que nisso não há discordância entre judeus e cristãos; pelo contrário, o número de livros se enquadra no número de letras hebraicas, mostrando, assim, a perfeição e plenitude do cânon de 22 livros. Ele cita todos os livros considerados canônicos do AT adotado pelos protestantes mas não cita absolutamente nenhum livro dos “deuterocanônicos” acrescentados pelo Concílio de Trento!
 
Depois disso, os católicos ainda dizem que somos nós, evangélicos, quem tiramos livros da Bíblia, quando na verdade vemos que foram eles quem acrescentaram, e não nós que tiramos! De fato, neste caso nem sequer apelar para a tradição vale, já que Hilário nos confirma que é a própria tradição que refuta a canonicidade dos livros apócrifos! Vejamos:
 
Em vinte e dois livros está julgada a lei do Antigo Testamento, para que corresponda ao número das letras... confesso que alguns querem acrescentar Tobias e Judite, mas o outro parecer está mais conforme a tradição(Hilario in Prolog. Psal. explanat. Veronae 1730)
 
Ele mais uma vez confirma o cânon de vinte e dois livros em conformidade com o cânon adotado pelos judeus, e diz ainda que alguns querem acrescentar os apócrifos de Tobias e Judite. Preste bem atenção nesta palavra que ele usa: acrescentar! Para os Pais da Igreja, colocar os livros apócrifos católicos dentro do cânon significaria acrescentar livros à Bíblia. Portanto, foram os católicos que acrescentaram livros ao Antigo Testamento canônico, e não nós que tiramos!
 
Se os Pais concordassem com a alegação católica de que os evangélicos que tiraram livros da Bíblia, eles não teriam dito que colocá-los na Escritura significaria acrescentar livros. Eles simplesmente teriam dito que este seria naturalmente o “parecer da tradição”. Mas, ao contrário, vemos que o “parecer que está mais conforme a tradição” é exatamente aquele que exclui os apócrifos, e não o que os acrescenta!
 
Isso não é irônico? Os católicos sempre gostam de apelar para a “tradição” para resolverem os seus [vários] problemas, mas nós vemos os Pais da Igreja dizendo que é a própria tradição que não aceitava os apócrifos! E agora, para onde vão correr os católicos? Se nem apelar para a tradição dá mais – pois vemos os Pais alegando que é a própria tradição que rejeita os apócrifos – o que é que sobrou para eles?
 
E mais: note que Hilário afirma que “alguns” querem “acrescentar” Tobias e Judite (dois dos livros apócrifos aceitos pelos católicos). Na suposição de que Hilário tinha uma opinião particular diferente da posição majoritária da Igreja, então ele teria dito que a maioria queria acrescentar os apócrifos mas ele era contra isso, e não que apenas alguns queriam acrescentá-los!
 
Este alguns é o que mata toda a charada. Ele nos mostra que a posição majoritária da Igreja era rejeitar os apócrifos, coisa que só alguns queriam acrescentá-los na Bíblia (coisa que os católicos fizeram mais de um milênio mais tarde). Portanto,temos uma evidência incontestável de que em pleno século IV os Pais da Igreja – em sua grande maioria – rejeitavam a canonicidade dos apócrifos, e rejeitavam ainda mais os poucos que queriam acrescentá-los, pois não estavam em conformidade com a tradição!
 
Então, o que vemos nos escritos de Hilário é que:
 
1. O cânon do AT era constituído de 22 livros considerados canônicos.
 
2. Nisso, os cristãos estão em concordância com os judeus.
 
3. “Alguns” queriam colocar alguns livros apócrifos junto aos canônicos, como os católicos fazem.
 
4. Hilário chama isso de “acréscimo” às Escrituras.
 
5. E diz que o “outro parecer” (contra os apócrifos) é o que está de acordo com a tradição herdada dos Pais, o que demonstra que ele reconhecia que os Pais da Igreja rejeitavam a canonicidade de tais livros.
 
 
 
-Apolinário de Laodiceia (310 – 390 d.C)
 
Sabemos muito pouco sobre a vida e obra de Apolinário, bispo de Laodiceia, na Síria. Ele colaborou com o seu pai, Apolinário, o Velho, na reprodução do Velho Testamento em formato de poesia homérica e do Novo Testamento em forma de diálogo platônico.
 
Quase nada dos seus escritos sobreviveu, mas graças a Jerônimo, pudemos saber que ele era outro que rejeitava os apócrifos, pois este afirmou no prólogo do comentário sobre Daniel que Apolinário era outro que rejeitava as adições apócrifas ao livro:
 
“As histórias de Susana e deBel e o Dragão não estão contidas no hebraico... Por isso, quando traduzia Daniel muitos anos atrás, anotei essas visões com um símbolo crítico, demonstrando que não estavam incluídas no hebraico... Afinal, Orígenes, Eusébio e Apolinário e outros clérigos e mestres distintos da Grécia reconhecem que, como eu disse, essas visões não se encontram no hebraico, e portanto não são obrigados a refutar Porfírio quanto a essas porções que não exibem nenhuma autoridade de Escrituras Sagradas (Prólogo do Comentário sobre Daniel, p.15, disponível aqui para leitura)
 
Portanto, no que sabemos acerca de Apolinário através de Jerônimo, podemos confirmar que era mais um dos que negavam que os acréscimos ao livro de Daniel exibissem "autoridade de Escrituras Sagradas", pois, de acordo com Jerônimo, ele (junto a Orígenes e a Eusébio, e outros "clérigos e mestres") reconhecia que aquelas partes do livro não se encontravam no hebraico; portanto, não exibiam nenhuma autoridade de Escrituras Sagradas.
 
 
 -Epifânio (310 – 403 d.C)
 
Epifânio foi um bispo da cidade de Salamina, no Chipre, no século IV d.C. Ele foi um dos principais defensores da ortodoxia cristã contra as heresias de seu tempo, chegando a escrever um gigantesco compêndio de heresias que amaeçavam a fé cristã, repleto de citações dos mais variados tipos. E, como não poderia ficar de fora, Epifânio não deixou de fazer menção ao cânon de vinte e dois livros, excluindo os apócrifos.
 
Suas duas obras mais famosas foram: “Panarion” (ou “Adversus Haeresis”) e “Mensuris et Ponderibus”. Nestas duas obras Epifânio nos deu três listas do cânon do Antigo Testamento. Iremos analisar cada uma delas a fim de analisarmos em que situações que os deuterocanônicos se encontram: se dentro ou fora do cânon do Antigo Testamento.
 
O primeiro (Adversus Haeresis, 8:6) compreende Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, os quatro livros dos Reis (1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis), os dois livros de Crônicas, os Doze profetas menores, Isaías, Jeremias e Lamentações com a Epístola e Baruque em um livro, Ezequiel, Daniel, os dois livros de Esdras (Esdras e Neemias) e Ester. Nesta lista nota-se claramente que Epifânio exclui os dois livros dos Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, Judite e Tobias de fazerem parte do cânon.
 
A segunda lista (de Mensuris et Ponderibus, 4) tem Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Josué, Juízes e Rute em um livro, 1 e 2 Crônicas em um livro, 1 e 2 Reis em um livro, 3 e 4 Reis em um livro, os Doze, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, os dois livros de Esdras e Ester. Nesta outra lista, vemos que absolutamente todos os apócrifos (incluindo Baruque) são deixados de fora.
 
A terceira lista (de Mensuris et Ponderibus, 23) compreende Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Jó, Juízes, Rute, Salmos, os dois livros das Crônicas, os quatro livros dos Reis, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, os Doze, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, os dois livros de Esdras e Ester. Nesta terceira e última lista passada por Epifânio, novamente a totalidade dos livros apócrifos acrescentados pelos católicos foi deixada de fora!
 
Em suma, a primeira lista é a única a incluir um único livro apócrifo (o de Baruque) junto a outro apócrifo (a Epístola de Jeremias), deixando todos os outros apócrifos de fora, e nas outras duas obras Epifânio corrige isso também e deixa de fora estes dois livros apócrifos que supostamente fariam parte do livro canônico de Jeremias e cita listas idênticas com ordem diferente e outro agrupamento de livros, mas deixando todos os livros apócrifos excluídos.
 
O quadro abaixo resumo aquilo que podemos extrair das obras de Epifãnio acerca do cânon bíblico do AT:
 
Livros Apócrifos
Adversus Haeresis, 8:6
Mensuris et Ponderibus, 4
Mensuris et Ponderibus, 23
1 Macabeus
FORA
FORA
FORA
2 Macabeus
FORA
FORA
FORA
Judite
FORA
FORA
FORA
Tobias
FORA
FORA
FORA
Eclesiástico
FORA
FORA
FORA
Sabedoria
FORA
FORA
FORA
Baruque
DENTRO
FORA
FORA

Qualquer um que analise com um mínimo de honestidade o quadro acima verá que Epifãnio está muito, mas muito longe de concordar com a pretensão católica de colocar a totalidade dos sete livros apócrifos dentro do cânon bíblico. Uma única vez ele cita um apócrifo junto a outro apócrifo que sequer é aprovado por Roma, mas depois corrige o equívoco e não coloca nem sequer estes dois nas outras listas.
 
A situação fica ainda mais catastrófica para os católicos quando vemos ele explicando a rejeição aos livros de Sabedoria e Eclesiástico, e dizendo que eles não estão no número dos aceitos. Depois de alistar os 22 livros do Antigo Testamento, ele diz:
 
“Há também além destes dois outros livros duvidosos, a Sabedoria de Salomão e o Eclesiástico... estes são úteis e proveitosos, mas não estão admitidos no número dos aceitos (Epiphan. adv. Haeres. pags. 18, 19. Colon. 1682, et Epiph)
 
Não é curioso saber que, nos dias de hoje, muitos católicos acusam os cristãos evangélicos de “heresia” por não concordarem com o cânon dos sete livros a mais, enquanto que no tempo dos Pais da Igreja a heresia era exatamente o inverso disso, e as obras antigas que refutavam as heresias buscavam exatamente combater este acréscimo de livros que o Vaticano colocou nas Bíblias deles hoje em dia?
 
Vemos claramente que os cristãos primitivos consideravam os livros apócrifos como duvidosos, e, por isso, não os admitiam no número dos aceitos (no cânon veterotestamentário), embora os considerassem úteis para a leitura, tanto quanto outros livros, como o Ensinamento dos Doze Apóstolos e O Pastor. Porém, em termos de aceitação no cânon, eles eram rejeitados, por serem considerados duvidosos. Então, não estavam admitidos no número dos aceitos.
 
O que a Igreja Católica fez mais tarde foi, na verdade, pegar estes livros duvidosos e transformá-los em “inspirados pelo Espírito Santo”, admitindo no número dos aceitos aquilo que jamais era admitido no cânon! O que os Reformadores fizeram, portanto, foi somente eliminar aquilo que era duvidoso e voltar ao cânon aceito pelos Pais.
 
 
-Cirilo de Jerusalém (315 – 386 d.C)
 
Cirilo foi bispo da Igreja de Jerusalém entre 350 e 386 d.C, e é considerado até hoje um grande apologista e doutor da Igreja. Na sua obra mais famosa (“Catequeses Mistagógicas”) ele aborda o tema do cãnon bíblico do Antigo Testamento e é mais um a defender o cânon de 22 livros em conformidade com o cânon judaico. Ele diz:
 
“Agora estas divinamente inspiradas Escrituras do Velho e Novo Testamento nos ensinam... Aprenda também diligentemente, e da Igreja, quais são os livros do Velho Testamento, e quais aqueles do Novo... Leia as Divinas Escrituras, os vinte e dois livros do Velho Testamento, estes que foram traduzidos pelos setenta e dois intérpretes... Destes leia os vinte e dois livros, mas não tenha nada com os livros apócrifos. Estude seriamente estes apenas, os quais nós lemos abertamente na Igreja. Mais sábio e mais piedoso que a ti mesmo foram os apóstolos, e os bispos dos tempos antigos, os presidentes da Igreja, que nos transmitiram estes livros. Sendo então um filho da Igreja, não falsifique seus estatutos. E do Velho Testamento, como temos dito, estude os dois e vinte livros, que se for desejoso de aprender, se esforce em lembrar pelo nome, como eu os cito. Pois a Lei, os livros de Moisés, são os cinco primeiros, Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio. E depois Josué, o filho de Num, e o livro de Juízes, incluindo Rute, contado como sete. E dos outros livros históricos, o primeiro e segundo livro dos Reis são entre os hebreus um livro; também o terceiro e quarto um livro. E da mesma forma, o primeiro e segundo de Crônicas são para eles um livro e o primeiro e segundo de Esdras são contados como um. Ester é o décimo segundo livro, estes são os escritos históricos. Mas aqueles que são escritos em versos são cinco, Jó, o livro de Salmos, Provérbios, Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos, que é o décimo sétimo livro. E depois destes veem os cinco livros Proféticos: dos doze Profetas um livro, de Isaías um, de Jeremias um, incluindo Baruque e Lamentações e a Epístola, então Ezequiel e o livro de Daniel, o vigésimo segundo do Velho Testamento” (NPNF2, Vol. 7, Cirilo de Jerusalém, Catechetical Lectures IV.33-36)
 
Cirilo passa uma lista de vinte e dois livros canônicos, onde ele exclui os livros de 1 e 2 Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, Tobias e Judite. Ele deixa claro que estes livros foram traduzidos pelos setenta e dois intérpretes, na versão conhecida como Septuaginta. Na Septuaginta alguns apócrifos estavam incluídos, assim como outros livros, tais como o Pastor de Hermas, 3 e 4 Macabeus, 1 Esdras (não confundir com o Esdras canônico), 1 e 2 Clemente, os Salmos de Salomão e a Epístola de Barnabé.
 
Os católicos geralmente se apóiam no fato de que os apóstolos e Pais da Igreja faziam uso da Septuaginta para alegarem que eles, então, criam na canonicidade dos apócrifos. Ora, não há nada mais longe da verdade do que isso. Até porque, se os sete livros apócrifos aprovados pela Igreja Católica são canônicos por estarem presentes na Septuaginta, então também deveríamos conceder inspiração divina e canonicidade a todos os livros listados acima, que também estavam presentes nos mais antigos códices da Septuaginta!
 
É óbvio, portanto, que o fato de algum livro estar presente na Septuaginta não significa automaticamente que este livro é considerado como parte integrante do cânon, assim como o fato dos Pais da Igreja fazerem uso dela não significa que eles consideravam todos eles canônicos, doutra forma teríamos que encher a Bíblia dos católicos com muito mais livros, se usássemos este mesmo “argumento”! O que, aliás, foi feito pela Igreja Ortodoxa, que aceita a canonicidade de 3 e 4 Macabeus por estarem na Septuaginta.
 
E aí, como é que fica? Se os católicos dizerem que os apócrifos são canônicos por estarem na Septuaginta, teriam que usar de bom senso e proclamar canonicidade a vários outros livros que eles não consideram inspirados, assim como fizeram os seus irmãos orientais. Mas como eles não têm critério e nunca tiveram, querem passar este “argumento” adiante por não terem nada mais convincente!
 
A verdade nua e crua é que o simples fato de um livro (apócrifo) estar incluído em uma versão das Escrituras não implica necessariamente que todas as pessoas que lerem tal versão concordam em gênero, número e grau com cada um dos livros. Prova disso é que as primeiras versões protestantes da Bíblia continham os livros apócrifos, mesmo eles não crendo na canonicidade deles!
 
Então, por que eles mantinham estes livros nas versões da Bíblia, se não criam na canonicidade e inspiração divina deles? Simplesmente porque, embora não fossem canônicos, eles serviam como boa leitura espiritual para edificação do povo. Foi exatamente assim que os Pais da Igreja entendiam e passavam adiante por escrito, deixando-nos inúmeras evidências históricas deste fato incontestável.
 
Ainda que os apócrifos estivessem incluídos em algumas versões das Escrituras e em algumas listas, eles faziam questão de diferenciar entre aquilo que é canônico (i.e, inspirado pelo Espírito Santo, fazendo parte do cânon bíblico) e aquilo que é apenas de uso eclesiástico (i.e, aquilo que serve como leitura na Igreja para a edificação do povo).
 
Tanto os Pais da Igreja (tais como todos os que já vimos e outros vários que veremos mais adiante) quanto os Reformadores creram desta forma. Foi por isso que as primeiras Bíblias protestantes tinham os apócrifos, mesmo não os considerando canônicos, e é por isso que Cirilo de Jerusalém também fez questão de fazer essa clara diferenciação, dando destaque a isso:
 
“Leia as Divinas Escrituras, os vinte e dois livros do Velho Testamento, estes que foram traduzidos pelos setenta e dois intérpretes... Destes leia os vinte e dois livros, mas não tenha nada com os livros apócrifos. Estude seriamente estes apenas, os quais nós lemos abertamente na Igreja(Catechetical Lectures IV.33-36)
 
Cirilo fala primeiramente para ler a versão traduzida pelos setenta e dois intérpretes (i.e, a Septuaginta), mas como ele sabia que existiam livros apócrifos, não considerados canônicos, e que estavam presentes nesta versão, ele faz questão de dizer logo em seguida que destes livros presentes na Septuaginta só era para ter como canônicos os vinte e dois que ele lista em seu cânon (listado acima, que deixa fora seis dos sete apócrifos incluídos pelos católicos), e que não era para ter nada com os livros apócrifos!
 
Isso significa que Cirilo reconhecia que existiam livros apócrifos (i.e, não-canônicos) incluídos na Septuaginta, e que estes não poderiam ser tomados como canônicos – nós não poderíamos nos confundir, pensando que todos aqueles livros lá presentes estivessem no cânon.
 
Ora, se só o fato de um livro estar presente na Septuaginta já significa que ele é canônico (como insinuam os católicos), então Cirilo jamais teria dito que tinham livros apócrifos no meio deles e que não era para termos nada com eles, mas somente com os canônicos.
 
E como sabemos exatamente quais eram estes livros presentes na Septuaginta e rejeitados por Cirilo, ficando apenas com aqueles que são canônicos e de autenticidade reconhecida por toda a Igreja? Isso é muito simples, pois Cirilo logo responde a esta questão nas seguintes palavras: “Leia as Divinas Escrituras, os 22 livros do VT... estude seriamente estes apenas, os quais nós lemos abertamente na Igreja”.
 
Ou seja, somente aqueles que Cirilo listou dentro dos vinte e dois livros que estão dentro do cânon, o que implica que os outros que ele não citou estão dentro daquilo que ele chama de “apócrifos”, que ele próprio reconhece que estavam presentes na Septuaginta, mas que não eram para termos nada com eles em termos de canonicidade como os demais!
 
Em resumo, podemos concluir que os livros presentes na Septuaginta e que não eram considerados canônicos, mas apócrifos, inclui 1 e 2 Macabeus, Tobias, Judite, Sabedoria e Eclesiástico.
 
O único livro que Cirilo não inclui desta vez foi Baruque, mas isso não é de levantar surpresas, visto que ele também considerava a “Epístola de Jeremias” (não confundir com o Jeremias canônico, que já havia sido listado anteriormente) juntamente com Baruque (provavelmente por considerar que tais livros pudessem fazer parte do livro canônico de Jeremias), mas este equívoco foi corrigido pelos outros Pais da Igreja que vieram antes e depois dele, que viram que nem Baruque nem a Epístola tinham canonicidade reconhecida.
 
Fato é que, se considerarmos Baruque inspirado porque Cirilo o mencionou, teríamos que fazer o mesmo com a Epístola, que está junto com Baruque. Doutro modo, ficaríamos somente com o livro canônico de Jeremias, reconhecido por toda a Igreja, sem Baruque e a Epístola, como o fizeram todos os outros Pais. A segunda posição é muito mais sustentável, visto que foi defendida por muito mais Pais da Igreja e que o próprio catolicismo rejeita a canonicidade da Epístola que supostamente acompanharia o livro de Jeremias.
 
Antes de concluirmos a parte de Cirilo, penso que seja relevante passar a lista de códices mais antigos da Septuaginta, demonstrando mais uma vez que o simples fato de um livro estar presente nela não significa necessariamente que faz parte do cânon, como Cirilo faz questão de frisar, e como os dados apontam:
 
Códice Alexandrino (A)
Códice Vaticano (B)
Códice Sinático (Alef)
Baruque, Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, 1 Esdras, 3 e 4 Macabeus, 1 e 2 Clemente, Salmos de Salomão
Sabedoria, Eclesiástico, Judite, Tobias, Baruque, 1 Esdras
Tobias, Judite, 1 Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, 4 Macabeus, Epístola de Barnabé, O Pastor de Hermas
 
Os livros em destaque (em vermelho) são livros presentes nestes códices da Septuaginta, mas nunca presentes nas Bíblias católicas. Vale ressaltar ainda que o Códice Vaticano exclui os livros dos Macabeus e que no Códice Sinático faltam Baruque e 2 Macabeus.
 
Tudo isso nos mostra que tem que ser muito ignorante à realidade para alguém continuar inutilmente levando adiante o “argumento da Septuaginta” como suposta “prova” a favor dos apócrifos, sendo que o próprio critério e bom senso desmentem isso, além do fato dos Pais da Igreja (como Cirilo) destacarem o fato de que não é porque um livro está presente na Septuaginta que ele automaticamente é canônico, e que só devem ser tomados como canônicos na Septuaginta os 22 livros comumente listados pelos Pais e que excluem os livros apócrifos de fazerem parte do cânon.
 
 
-Basílio, o Grande (329 – 379 d.C)
 
Basílio de Cesareia foi um teólogo, escritor e doutor da Igreja cristã no século IV. Ele foi um dos mais influentes Pais no Oriente, nascido em Cesareia, na Ásia Menor. Ele foi irmão de outro famoso Pai da Igreja, Gregório de Nissa, e amigo próximo de Gregório Nazianzeno (que também iremos analisar neste estudo). Sua menção ao cânon também faz referência a vinte e dois livros do AT, e ele apela à autoridade da tradição hebraica sobre o cânon veterotestamentário para chegar a esta conclusão:
 
“Como estamos lidando com números e cada número entre reais existências, um certo significado do qual o Criador do universo fez uso completo tanto no esquema geral como no arranjo dos detalhes, nós devemos dar boa atenção e com a ajuda das Escrituras traçar seu significado e o significado de cada um deles. Nem devemos falhar em observar que não é sem razão que os livros canônicos são vinte e dois, de acordo com a tradição hebraica, o mesmo número das letras do alfabeto hebraico. Pois como as vinte e duas letras podem ser consideradas uma introdução à sabedoria e às divinas doutrinas dadas aos homens naquelas letras, assim os vinte e dois livros inspirados são o alfabeto da sabedoria de Deus e uma introdução ao conhecimento das realidades (Philocalia, Cap.3)
 
Basílio deixa claro que a “tradição hebraica” está de acordo com a visão da Igreja acerca do número de livros canônicos do Antigo Testamento. Se a visão da Igreja fosse diferente dos judeus em relação a isso, o mais provável seria que Basílio rejeitasse a tradição hebraica e estabelecesse a sua própria tradição no lugar. Porém, ao que tudo nos indica, vemos que Basílio – assim como os outros Pais – reconhecia que eles, os judeus, eram os detentores dos “oráculos de Deus” (Rm.3:2) no Antigo Testamento.
 
A analogia bíblica é que a revelação (mensagem) de Deus no AT foi entregue aos judeus, enquanto que a revelação no NT foi entregue à Igreja. Então, assim como os judeus não podem se meter nos assuntos ligados à Igreja (como o cânon do Novo Testamento), a Igreja não pode se meter naquilo que foi confiado a eles (o cânon do Antigo Testamento). A Palavra (ou “oráculos”) de Deus foi entregue aos judeus no tempo da antiga aliança, e aos cristãos no tempo da nova aliança.
 
Assim como eles tem que respeitar a posição da Igreja cristã com relação à formação do cânon neotestamentário (por exemplo, o fato dos judeus não aceitarem o NT não vai influenciar na canonicidade dele), assim também nós temos que aprender a respeitar a posição judaica com relação ao cânon do Velho Testamento, como sendo a decisão que o próprio Deus guiou – pois o Deus que guiou os hebreus no AT é o mesmo Deus que guia a Igreja no NT.
 
Quando Jesus veio ao mundo, já existiam as Escrituras (incluindo uma lista de livros), mas não existia a Igreja. O que Cristo fez não foi invalidar a autoridade da primeira que estava a encargo dos judeus para deixar a Igreja mudar até aquilo que Deus já havia confiado aos judeus, mas, sim, tirar a autoridade deles para a Igreja neste novo tempo, o chamado “tempo da graça”. Ou seja, no tempo da Lei, os judeus eram os guardiões da Lei (Antigo Testamento), enquanto que, no tempo da graça, os cristãos são os guardiões da nova aliança (Novo Testamento).
 
Cristo não veio para abolir a Lei ou os direitos dos judeus como guardiões dela, mas para nos apontar uma Nova Aliança, onde a Igreja toma conta do Novo Testamento assim como Israel tomava conta do Antigo Testamento, ambos dirigidos por Deus na formação da Escritura.
 
Por maior que seja a autoridade da Igreja, Cristo não a outorgou para tirar a autoridade deles (judeus) sobre o AT, mas para estabelecer autoridade à Igreja a este novo tempo, chamado de Novo Testamento, ou Nova Aliança. Nós não podemos simplesmente nos fechar para toda a revelação concedida por Deus a eles na formação do cânon veterotestamentário.
 
Da mesma forma que Deus guiou a Igreja na formação do cânon do NT que consideramos inspirados por Ele, assim também Deus guiou a comunidade judaica no reconhecimento dos livros canônicos que já existiam quando Jesus veio ao mundo, e que foram muitas vezes utilizados por Ele, embora a Igreja cristã nem sequer existisse na época!
 
Jesus não iria falar que algum livro era Escritura Sagrada se não existisse um cânon e uma direção de Deus já naquela época para isso. E ele não esperou a Igreja cristã nascer para estabelecer o cânon do Antigo Testamento para só depois passar a citá-los como Escritura.
 
Pelo contrário. Ele já citava as Escrituras em sua época como Escritura Sagrada (inspirada) por Deus, e desta forma só podemos esperar que houve sim revelação ao povo judeu sobre a formação do cânon do AT, doutra forma Jesus e os apóstolos estariam perdidos, sem saberem quais livros eram ou não sagrados!
 
E, se Deus guiou os israelitas na formação deste cânon do AT – já usado na época por Jesus e pelos apóstolos – então devemos reconhecer este cânon como autorizado e aprovado por Deus, assim como faziam constantemente os Pais da Igreja.
 
Qualquer leitor poderá facilmente verificar que os Pais da Igreja tinham várias discordâncias (e até algumas brigas, por sinal) com os judeus por causa da não-aceitação destes ao Novo Testamento, mas quando o assunto passava a ser o cânon bíblico do AT, nunca houve uma única discussão entre um cristão e um judeu, simplesmente porque os cristãos reconheciam que a direção divina na formação do cânon veterotestamentário havia sido dada por Deus a eles, os judeus.
 
É por isso que vemos constantemente os Pais da Igreja mencionando o número de vinte e dois livros sagrados, igualzinho aos judeus. E é por isso que Basílio, no texto acima, apela à tradição hebraica e ao número de letras do alfabeto hebraico para formular o próprio cânon cristão – porque eles reconheciam o valor da tradição hebraica na formação do cânon crido por eles!
 
E, vale sempre a pena ressaltar, os judeus nunca aceitaram os apócrifos, e até hoje rejeitam Eclesiástico, rejeitam Sabedoria, rejeitam Tobias, rejeitam Baruque, rejeitam Judite e rejeitam todos os Macabeus. Eles dão valor histórico a estes livros, os respeitam, os lêem, mas não os consideram Escritura Sagrada e autoritativa.
 
Os cristãos, em comum acordo, liam estes livros e consideravam bons para a edificação do povo, mas igualmente diziam que a formulação de doutrina deveria estar dentro daqueles mesmos vinte e dois únicos livros considerados canônicos pelos judeus – sem os apócrifos – em conformidade com aquilo que o próprio Jerônimo (o maior tradutor da Bíblia que já existiu e um dos maiores Pais da Igreja de sua época) disse:
 
"E assim da mesma maneira pela qual a igreja lê Judite, Tobias e Macabeus (no culto público), mas não os recebe entre as Escrituras canônicas, assim também sejam estes dois livros [Sabedoria e Eclesiástico] úteis para a edificação do povo, mas não para estabelecer as doutrinas da Igreja" ("Prefácio dos Livros de Salomão")
 
Creio que a declaração acima resume toda a questão.
 
 
 

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Por: Lucas Banzoli.

  

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