O QUE ERA A VERDADEIRA TRADIÇÃO APOSTÓLICA?

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Este artigo faz parte de meu livro: "Em Defesa da Sola Scriptura"
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Há certas palavras que ganharam com o tempo um significado completamente distinto daquele que era empregado originalmente, mudando-se com isso o conceito, definição e sentido que o termo tinha. Há alguns anos atrás, em um debate com um espírita, foi difícil convencê-lo que por “espírito maligno” (At.19:15) a Bíblia estava simplesmente se referindo a um demônio, e não a um “espírito do mau”, no sentido kardecista que o termo ganhou.

 

Para ele, os demônios eram espíritos humanos que deixavam o corpo e caminhavam rumo a um “mundo dos espíritos”, onde podiam agir bem ou mal, e, por isso, quando ele via a Bíblia usando o termo “espírito maligno” logo pensava que se tratava não de um demônio como na concepção histórica e ortodoxa cristã, mas como Kardec havia sugerido. Essa ideia distorcida do termo, que em nada tinha a ver com a Bíblia, era praticamente impossível de ser tirada da cabeça dele, de tanto que ele ouviu dizer que espírito era aquilo que os espíritas pensam que é.

 

Outro exemplo semelhante é do termo “alma”, que os imortalistas interpretam como sendo aquela mesma coisa que Platão pensava que era e o divulgou amplamente, no sentido de uma entidade imaterial que carregamos em nosso corpo e que após a morte o deixa com consciência e personalidade, como um “fantasminha” que supostamente temos dentro de nós. Tal conceito era diametralmente oposto à concepção hebraica original do termo, onde alma-nephesh nada mais era senão o ser vivo que o homem se tornou após a união do barro com o fôlego de vida (Gn.2:7).

 

Os muçulmanos fazem a mesma coisa com uma outra palavrinha bíblica: o “Consolador” (Jo.14:16). Para eles, este Consolador que viria depois de Cristo era Maomé. Sabemos que, biblicamente, este Consolador não é Maomé ou qualquer outra pessoa, mas o Espírito Santo (Jo.14:26). Mas é virtualmente impossível convencer um muçulmano disso, porque eles já têm pré-concebida a ideia de que Maomé é o Consolador de João 14:16. Assim, quando eles leem “Consolador”, imediatamente lhes vêm à mente Maomé.

 

A mesma coisa ocorre com os católicos romanos, mas com uma palavrinha diferente, chamada “tradição”. Há alguns anos, eu fiz um artigo em meu site com algumas dezenas de citações dos Pais da Igreja sobre a Sola Scriptura, como fiz no capítulo anterior deste livro, embora tivesse menos citações do que passamos aqui. Após algumas semanas, um católico disse que iria “me refutar”. Eu fiquei ansioso, com grandes expectativas, pensando que ele refutaria cada texto passado por mim, um por um, provando exegeticamente que os Pais da Igreja estavam dizendo o contrário daquilo que eu mostrava que eles estavam claramente dizendo.

 

Eu estava esperando que ele mostrasse que quando Agostinho disse que a Bíblia era a autoridade suprema, ele estava querendo dizer outra coisa. Eu estava esperando que ele refutasse o texto de Jerônimo onde este diz que rejeitava tudo o que não estivesse escrito e aceitava somente o que estava escrito. Eu cria realmente que ele contestasse Tertuliano quando este disse que as doutrinas sustentadas fora da Escritura estavam sob o anátema fulminado de Deus. E eu sinceramente achei que ele fosse surpreender com uma interpretação completamente diferente de Vicente de Lérins quando este disse que a Escritura era a autoridade única. E o mesmo em relação aos outros textos.

 

O que eu vi, contudo, foi uma das coisas mais frustrantes e decepcionantes que testemunhei em minha vida. Além de ele não refutar absolutamente nenhum texto mostrado por mim – talvez admitindo que não houvesse forma de refutar a clareza dos textos abordados – ele se limitou apenas a passar algumas dezenas de outros textos onde os Pais citavam a palavra “tradição”, sem sequer se preocupar em mostrar em que contexto que essa tradição estava inserida, nem tampouco em dizer o que significava aquela tradição. Ele simplesmente se limitou a citar a “tradição” empurrando a priori o seu conceito romanista do termo, como se fosse a mesma coisa que os Pais tivessem em mente na época. Uma completa vergonha. Uma decepção. Frustração total.

 

Neste capítulo, ao invés de empurrarmos o nosso conceito de tradição a priori, examinaremos cada texto em que os Pais da Igreja citavam a “tradição”, para descobrirmos o que exatamente eles queriam dizer com este termo. Afinal, se a tradição era entendida por eles da mesma forma que os papistas entendem hoje, seguiria a conclusão de que todos os Pais que mostramos no capítulo anterior eram bipolares, contraditórios e não sabiam se a Bíblia era ou não era a autoridade máxima de fé, pois uma hora afirmavam claramente os princípios da Sola Scriptura, e outra hora sustentavam a existência de uma tradição no mesmo sentido católico-romano do termo, que entra em conflito com o conceito da Sola Scriptura.

 

A tradição apostólica dos Pais, contudo, não era nem um pouco conflitante com o princípio bíblico, patrístico e reformado da Sola Scriptura, isso porque nenhum deles jamais sustentou qualquer tradição como sendo doutrinas extra-bíblicas. James White disse:

 

“A pessoa que deseja saber se os Pais deram apoio real ao conceito romano de ‘tradição’ reconhecerá que se torna necessário um tipo muito específico de uso do termo. Citar simplesmente passagens em que o termo ‘tradição’ é encontrado dificilmente será suficiente, embora isso seja, com muita frequente, o que nos é oferecido. Ao lado da óbvia consideração de que o termo ‘tradição’ pode conter muitos sentidos, é claramente necessário demonstrar que, quando um Pai da Igreja se refere à ‘tradição’, ele quer significar com isso o mesmo conceito como foi enunciado em Trento: uma tradição inspirada, transmitida fora da Escritura, sem a qual não podemos apropriarmo-nos de toda a verdade revelada de Deus”[1]

 

A tradição existente nos escritos dos Pais tinha sempre somente quatro sentidos que eram costumeiramente utilizados, sendo eles:

 

Tradições Escriturísticas.

Tradições como costumes.

Tradições como dados históricos.

Tradições como formas de interpretar a Bíblia.

 

Nenhum destes quatro conceitos existentes sobre a tradição atinge em qualquer grau a Sola Scriptura. Tradições com base bíblica são apoiadas puramente pela Sola Scriptura. Costumes até as igrejas evangélicas possuem. Dados históricos também. Interpretação da Bíblia só pode ser feita com coisas que estão na Bíblia. Nenhuma vez foi sustentada uma tradição conflitante com o sentido de Sola Scriptura, isto é, uma tradição que servisse de fundamento para doutrinas que não estão na Bíblia, mas que foram preservadas e transmitidas oralmente. Veremos caso por caso.

 

 

• Tradições Escriturísticas

 

O Pai da Igreja mais constantemente citado pelos romanistas na defesa da tradição é Irineu de Lyon. É fato inegável que Irineu falou sobre a tradição da Igreja. Nenhum cristão evangélico discorda disso. Mas a questão é: em que sentido Irineu se referiu à tradição? Para Irineu, a tradição apostólica era uma fonte de revelação paralela às Escrituras (ou seja, uma regra de fé que revela doutrinas que as Escrituras não mostram) ou seria simplesmente o ensino do conteúdo das próprias Escrituras?

 

Para isso, vamos ao próprio Irineu, que responde:

 

"Não pequena discussão havia ocorrido entre os irmãos de Corinto, e a Igreja de Roma enviou uma poderosa carta aos coríntios, exortando-os à paz, renovando a sua fé e declarando a tradição que tinha recentemente recebido dos apóstolos, proclamando um Deus onipotente, Criador do céu e da terra, o Criador do homem, que trouxe o dilúvio e chamou Abraão, que falou com Moisés, que estabeleceu a lei, que enviou os profetas, e que preparou o fogo para o diabo e seus anjos. A partir deste documento, todo aquele que lê-lo pode saber que Ele, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, foi pregado pelas Igrejas, e também pode compreender a tradição da Igreja"[2]

 

Irineu diz que a Igreja de Roma enviou através de seu principal bispo, Clemente, uma carta à Igreja de Corinto, mostrando a tradição que tinha recentemente recebido dos apóstolos. Se a tradição daquela época era a mesma tradição que os católicos romanos reclamam para si mesmos hoje, esperaríamos obviamente a revelação daquilo eles chamam hoje por tradição, ou seja:

 

• Assunção de Maria.

• Purgatório.

• Confissão Auricular.

• Extrema-Unção.

• Indulgências.

• Reza aos mortos.

• Imaculada conceição e outros dogmas marianos.

• Primazia universal jurisdicional do bispo romano.

• Infalibilidade papal.

• Culto às imagens.

• Celibato obrigatório do clero.

• Maria como "Rainha dos Céus".

• Limbo.

• Outras doutrinas não-Escriturísticas advindas da "tradição".

 

Mas, ao contrário, o que ele chama de tradição é exatamente aquilo que está claramente nas Escrituras, isto é:

 

• A existência de um Deus onipotente e criador do céu e da terra.

• A existência do dilúvio.

• O chamado de Abraão e de Moisés.

• A Lei.

• Os Profetas.

• O fogo do juízo para o diabo e seus anjos.

 

Nada daquilo que Irineu chamava de tradição da Igreja tinha qualquer ligação com um conteúdo que estivesse fora das Escrituras, mas, ao contrário, diz respeito àquilo que está explicitamente presente nela. Isso podemos observar também ao longo de todos os lugares da obra de Irineu:

 

"A Igreja, embora dispersa através de todo o mundo, até os confins da terra, recebeu dos apóstolos e de seus discípulos essa fé: num Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do Céu e da terra, e do mar, e de todas as coisas que neles há, e em Cristo Jesus, o Filho de Deus, que se encarnou para a nossa salvação, e no Espírito Santo, que proclamou através dos profetas as dispensações de Deus, os adventos, o nascimento através de uma virgem, a paixão, a ressurreição dos mortos, a ascensão para o Céu em carne do nosso amado Cristo Jesus, nosso Senhor, e a Sua futura manifestação do Céu na glória do Pai, para reunir todas as coisas em uma e levantar de novo toda a carne de toda a raça humana, a fim de que a Jesus Cristo, nosso Senhor, Deus, Salvador e Rei, de acordo com a vontade do Pai invisível, se dobre todo joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que por Ele deve ser executado o juízo para todos, e que os anjos que transgrediram e se tornaram apóstatas, juntamente com os ímpios e profanos entre os homens, sejam condenados ao fogo eterno, mas no exercício da Sua graça conferir imortalidade ao justo e santo, e àqueles que mantiveram Seus mandamentos e perseveraram em Seu amor, alguns desde o início e outros desde o seu arrependimento, e conduzi-los à eterna glória. Como já observado, a Igreja, tendo recebido essa pregação de fé, embora espalhada por todo o mundo, cuidadosamente a preserva"[3]

 

Aqui novamente vemos que tudo aquilo que a Igreja recebeu dos apóstolos como ponto de fé e que é chamado de "tradição" pelos Pais diz respeito exclusivamente a doutrinas pregadas claramente nas Escrituras, tais como:

 

• A existência do Deus Todo-Poderoso criador dos céus e da terra.

• A encarnação de Jesus Cristo, o Filho de Deus.

• A existência do Espírito Santo.

• Os adventos de Cristo.

• O nascimento através de uma virgem.

• A paixão de Cristo.

• A Sua ressurreição dos mortos.

• A Sua ascensão aos céus em carne.

• A futura volta de Jesus.

• A ressurreição geral dos mortos no fim dos tempos.

• A divindade e reinado de Cristo Jesus, nosso Senhor.

• O juízo vindouro.

• A condenação ao diabo e aos ímpios.

• A vida eterna concedida aos justos e santos.

 

Novamente, a tradição apostólica em nada tinha a ver com doutrinas extra-bíblicas que não são ensinadas nas Escrituras, mas sim àquilo que está claramente na Bíblia, e que por sinal são cridas por todo e qualquer evangélico que rejeita a falsa "tradição" de Roma, que em nada tem a ver com a verdadeira e legítima tradição pregada pelos Pais. É como James White afirmou:

 

“Não há um único item arrolado por Irineu que não possa ser demonstrado diretamente das páginas do texto sagrado. Por conseguinte, obviamente, sua ideia de ‘tradição’ não concede a Trento qualquer sustentação, pois a definição de Trento não reivindica um resumo Escriturístico derivado da verdade do evangelho, mas uma revelação inspirada transmitida oralmente por intermédio de um católico romano”[4]

 

E Irineu continua:

 

"Muitos povos bárbaros que creem em Cristo, se atêm a esta maneira de proceder; sem papel nem tinta. Levam a salvação escrita em seus corações pelo Espírito e preservam cuidadosamente a antiga tradição, acreditando em um único Deus, o Criador do céu e da terra, e todas as coisas nele, por meio de Cristo Jesus, o Filho de Deus, que por causa de Seu amor pela sua criação condescendeu em ser nascido da virgem, unindo o homem através de Si mesmo a Deus, e, depois de ter sofrido sob Pôncio Pilatos, subiu novamente aos céus, sendo recebido em esplendor, e virá em sua glória como o Salvador daqueles que são salvos, e como juiz daqueles que serão julgados, enviando para o fogo eterno aqueles que transformaram a verdade e desprezaram o Seu Pai e seu advento. Aqueles que na ausência de documentos escritos acreditam nessa fé, sendo bárbaros até no que diz respeito à nossa língua, mas no que dizem respeito à doutrina, moral e teor de vida são, por causa da fé, muito sábios, pelo favor de Deus, conversando em toda a justiça, castidade e sabedoria. Se alguém fosse pregar a esses homens as invenções dos hereges, falando com eles em sua própria língua, eles iriam tampar de uma só vez os ouvidos e fugiriam ao mais longe possível, não suportando até mesmo escutar tais blasfêmias. Assim, por meio da antiga tradição dos apóstolos eles não têm sua mente aberta para conceber qualquer doutrina sugerida por esses mestres"[5]

 

Irineu diz que existiam povos bárbaros que não tinham nem papel nem tinta, mas que mesmo assim seriam salvos por meio daquilo que é pregado através da antiga tradição dos apóstolos. Esse seria o momento mais perfeito para que Irineu mostrasse que as Escrituras não são suficientes e que existem doutrinas fora da Bíblia que são igualmente necessárias para a salvação do homem, como prega a Igreja Romana. Contudo, tudo aquilo que ele ensina como sendo a tradição apostólica diz respeito àquilo que já está na Bíblia, tais como:

 

• A existência de um Deus criador dos céus e da terra.

• A existência de Jesus Cristo, o Filho de Deus.

• A encarnação de Cristo através de uma virgem.

• A mediação de Cristo.

• A ascensão de Cristo.

• A glorificação de Cristo.

• A volta de Jesus em glória.

• O juízo vindouro.

• A condenação dos ímpios.

• A salvação dos justos.

 

Mais uma vez, todos os pontos que são considerados como "tradição apostólica", os quais Irineu diz que os povos bárbaros criam neles mesmo sem papel nem tinta (ou seja, apenas por meio do ensino ou tradição oral), diz respeito ao conteúdo das Escrituras, e não a algo que esteja fora ou escondido delas. É por isso que essa tradição tinha que ser confirmada por provas bíblicas, como o mesmo diz claramente:

 

"Uma vez que a tradição dos apóstolos existe na Igreja e é permanente entre nós, vamos voltar para as provas bíblicas por aqueles apóstolos que também escreveram o Evangelho e que registraram a respeito de Deus, apontando que nosso Senhor Jesus Cristo é a verdade, e que nenhum mentira há nele"[6]

 

Sendo assim, é evidente que a tradição apostólica que era crida pelos Pais da Igreja em nada tinha a ver com doutrinas não-bíblicas que as Escrituras não ensinam em lugar nenhum, mas sim a doutrinas que tem que ser provadas pela própria Bíblia, o que destrói o conceito católico-romano acerca daquilo que eles consideram "tradição". Os papistas tiram grosseiramente do contexto os textos em que Irineu fala sobre “tradição”, tentando manipular a mente dos mais incautos para que pensem que este bispo de Lyon acreditava na tradição no mesmo sentido que os romanistas defendem – quando era exatamente o contrário.

 

O próprio Irineu era o primeiro a rejeitar as tradições orais que ensinavam doutrinas fora das Escrituras, como os gnósticos faziam. Sobre eles, ele disse:

 

“Leem coisas que não foram escritas e, como se costuma dizer, trançando cordas com areia, procuram acrescentar às suas palavras outras dignas de fé, como as parábolas do Senhor ou os oráculos dos profetas ou as palavras dos apóstolos, para que as suas fantasias não se apresentem sem fundamento. Descuidam a ordem e o texto das Escrituras e enquanto lhes é possível dissolvem os membros da verdade. Transferem, transformam e fazendo de uma coisa outra seduzem a muitos com as palavras do Senhor atribuídas indevidamente a fantasias inventadas”[7]

 

Os gnósticos, por meio de uma tradição oral, ensinavam doutrinas fora da Bíblia, acrescentando coisas à Palavra de Deus, e descuidando da ordem e do texto das Escrituras, e são claramente repreendidos por Irineu por causa disso. Ele rejeita a tese de que a verdade nos foi legada por viva voz, ao invés de em documentos escritos:

 

“Eles [gnósticos] alegam que a verdade não foi entregue por meio de documentos escritos, mas de viva voz”[8]

 

A “tradição” papista se parece muito mais com que a que foi rejeitada por Irineu do que com a que foi aceita por ele. A tradição que Irineu cria e sustentava era uma tradição com total base bíblica de ensino, a qual todo e qualquer evangélico crê. A tradição que ele rejeitava era uma que acrescentava às Escrituras doutrinas não-escritas, exatamente como aquela que os romanistas creem. Assim, o tiro sai pela culatra e o argumento papista em torno da tradição de Irineu se volta contra eles mesmos, como um bumerangue.

 

Essa tradição apostólica que envolvia doutrinas era puramente Escriturística, isto é, era somente a transmissão do ensino das Escrituras, e por essa mesma razão Dionísio a chamava de “tradição Escriturística”:

 

“Há de se cogitar, que a tradição Escriturística afirma que os mandamentos da Lei foram transmitidos diretamente por Deus a Moisés. Certamente! Mas se as Sagradas Escrituras assim se exprimem é para que não ignoremos que essas prescrições são a própria imagem da Lei divina e sagrada”[9]

 

“Mas ainda é conveniente a meus sentidos refletir sobre essa tradição Escriturística que atribui aos anjos os números de mil vezes mil e dez mil vezes dez mil [Daniel 7:10], retornando sobre eles mesmos e multiplicando por eles mesmos os números mais elevados que nós conhecemos, para nos revelar claramente que o número das legiões celestes para nós escapa de todas as medidas”[10]

 

Os romanistas ainda citam uma passagem de Atanásio a Serapião onde ele diz:

 

“Permitam-nos observar que a própria tradição, ensino e fé da Igreja Católica que o Senhor lhe deu desde o início, foram pregadas pelos apóstolos e preservadas pelos Pais. Sobre isso foi a Igreja estabelecida; e se alguém se afasta disso, ele não é nem jamais deve ser chamado de cristão”[11]

 

O que os apologistas católicos ignoram ou fingem que desconhecem é que o próprio Atanásio explicou em seguida qual era essa tradição que ele se referia, citando doutrinas apoiadas exclusivamente pela Bíblia:

 

“Há uma Trindade, santa e perfeita, reconhecida como Deus, em Pai, Filho e Espírito Santo, nada tendo de estranho ou externo mesclado com ela, não composta de um formador e uma origem, mas inteiramente criativa e modeladora (...) e assim é pregado na Igreja um Deus que é sobre todos, por meio de todos e em todos (...) E porque esta é a fé da Igreja, que eles de algum modo compreendam que o Senhor enviou os apóstolos e os comissionou para fazer disso o fundamento da Igreja, quando disse: ‘Ide ensinar todas as pessoas, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo’”[12]

 

O próprio Atanásio se posicionou contrário às tradições sem base bíblica, quando repreendeu as tradições dos judeus exatamente em função do fato de que tal tradição anulava os mandamentos escritos por Deus, e citou também o texto de Paulo, onde ele diz para não receber qualquer doutrina além daquela que eles já tinham recebido:

 

“E o Senhor reprovou os judeus, dizendo: ‘Vocês transgridem os mandamentos de Deus por causa das suas tradições’ (Mt.15:3). Pois eles posteriormente mudaram os mandamentos que receberam de Deus pelo seu próprio entendimento, preferindo observar as tradições dos homens. E, sobre estes, pouco tempo depois o bem-aventurado Paulo novamente deu orientações aos gálatas que estavam em perigo, escrevendo-lhes: 'Se alguém pregar alguma coisa que vá além do que já receberam, seja anátema’ (Gl.1:9)”[13]

 

É por isso que ele diz claramente que a tradição que ele recebeu estava em conformidade com as Escrituras, e não fora delas:

 

"De acordo com a tradição passada a nós pelos Pais, eu passei essa tradição sem inventar nada estranho a ela. O que eu aprendi, eu escrevi, em conformidade com as Escrituras"[14]

 

O que ele aprendeu, ele escreveu, em conformidade com as Escrituras. Este adendo seria desnecessário caso a tradição herdada por ele não tivesse fundamento Escriturístico ou base bíblica. Se fosse uma tradição fora da Bíblia, como é o caso da tradição católico-romana, ele não teria adicionado este fato importante que desvenda qualquer mistério sobre a tradição, que é a sua declaração de que essa tradição estava em conformidade com as Escrituras (não somente que não as contradizem).

 

O mesmo Atanásio afirmou em outra oportunidade que a tradição da Igreja era confirmada por ambos os Testamentos:

 

“Mas a nossa fé é certa, e começa a partir do ensino dos apóstolos e da tradição dos Pais, sendo confirmada tanto pelo Novo como pelo Antigo Testamento[15]

 

Diferentemente da tradição romana, onde coisa nenhuma precisa estar na Bíblia e onde muitas doutrinas estão fundamentadas puramente sob a tradição e não tem qualquer base bíblica (tornando a tradição suficiente em si mesma), a verdadeira tradição apostólica dos Pais da Igreja era «confirmada por ambos os Testamentos». Ou seja: não bastava dizer que “estava na tradição”, tinha que comprovar isso usado base bíblica!

 

A verdadeira tradição tinha que ser confirmada à luz das Escrituras. Enquanto a tradição romana não precisa da confirmação das Escrituras para provar que certa doutrina ou dogma é verdadeiro, a legítima tradição tinha que ter fundamento bíblico para ser confirmada, como nos diz Atanásio. O mesmo princípio era aplicado por Cipriano. Ao invés de aceitar toda tradição que se dizia apostólica, ele disse:

 

De onde é aquela tradição? Ela vem da autoridade do Senhor e do Evangelho, ou ela vem dos comandos e das epístolas dos apóstolos? Pois que aquelas coisas que estão escritas devem ser feitas, Deus testemunha e admoesta, dizendo a Josué o filho de Num: ‘O livro desta lei não deve se afastar de tua boca; mas tu deves meditar nele dia e noite, para que tu possas observar para fazer de acordo com tudo que está escrito ali’. Também o Senhor, enviando Seus apóstolos, os ordena para que as nações sejam batizadas, e ensinadas a observar todas as coisas que Ele comandou. Se, então, é ou prescrito no Evangelho, ou contido nas epístolas ou Atos dos Apóstolos, para que aqueles que vêm de alguma heresia não devam ser batizados, mas somente as mãos sejam impostas a eles em arrependimento, que esta divina e santa tradição seja observada. Mas se em todo lugar os hereges são chamados nada mais do que adversários e anticristos, se deles se pronuncia que são pessoas a ser evitadas, e serem pervertidas e condenadas por si mesmos, porque é que não deveríamos pensar que eles sejam dignos de ser condenados, já que é evidente do testemunho apostólico que eles são de si mesmos condenados?”[16]

 

O mais interessante desta citação é que Cipriano estava se opondo a nada menos que o bispo de Roma da época, que era Estêvão. Este se oponha à ideia de que os hereges teriam que ser rebatizados ao virem à Igreja, enquanto Cipriano mantinha firme sua opinião de que os hereges tinham que passar pelo rebatismo. Um dos argumentos do bispo romano era que uma tradição dizia que os hereges não tinham que passar por rebatismo. Cipriano, ao invés de acatar essa tradição do bispo de Roma, rebateu com uma frase que deveria ressoar pelos ouvidos de todos aqueles que se dizem “guardadores da tradição apostólica”:

 

“...De onde é aquela tradição?”

 

Em outras palavras: será que devemos aceitar todas as tradições vindas de Roma (independentemente de estarem ou não nas Escrituras), ou será que devemos aceitar somente aquelas tradições que vem da Bíblia? Para os papistas, qualquer tradição vinda de Roma – ainda que não tenha qualquer base bíblica – pode ser aceita com facilidade, se tiver o aval do papa. Já para Cipriano, que discutia com um bispo de Roma, apenas as tradições que estavam contidas no Evangelho, nas Epístolas ou nos Atos que deveriam ser aceitas.

 

Ele não aceitava qualquer tradição, mas perguntava de onde ela vinha, pois “as coisas que estão escritas devem ser feitas”. Mas, se ela não estivesse prescrita nas Escrituras, ele se rejeitava a observar – como de fato rejeitou a tradição de Estêvão. Isso nos mostra que devemos examinar cada tradição sob a luz da Escritura Sagrada. Foi exatamente isso o que fizeram os reformadores, e precisamente o mesmo que Cipriano fez com aquele bispo de Roma.

 

Ele afirma que aquelas tradições que estão escritas na Sagrada Escritura devem ser seguidas, e então diz que, se a tradição está de acordo com aquilo que é prescrito no Novo Testamento, «que esta divina e santa tradição seja observada»; mas, se não é assim, então não devemos nos submeter a tradições não-bíblicas, mesmo se tiver sido proferida por algum bispo de Roma, assim como ele rejeitou a tradição de Estêvão por não constar nas Escrituras.

 

Em outro momento, Cipriano volta a condenar tais tradições, chamando-as de “humanas” por não constarem nas Escrituras, as “ordenanças divinas”:

 

“Que orgulho e que presunção é igualar tradições humanas às ordenanças divinas!”[17]

 

“De onde vem essa tradição” é uma pergunta que deve ser feita a todo o momento quando nos deparamos com uma delas. E, logo em seguida, o próximo passo será examinarmos as Escrituras para vermos se há respaldo a essa tradição que envolve doutrina. Se há, então não há qualquer problema em aceitá-la. Mas, se não há, então se cumpre aquilo que o próprio Cipriano disse ao bispo de Roma:

 

“Dá gloria a Deus quem, sendo amigo de hereges e inimigo dos cristãos, acha que os sacerdotes de Deus que suportam a verdade de Cristo e a unidade da Igreja, devem ser excomungados?”[18]

 

Cipriano rejeitou a tradição não-bíblica de Estêvão e o chamou de «amigo de hereges e inimigo dos cristãos», por manter uma tradição que não se encontra nas Escrituras. Se Cipriano fez isso e ele é até hoje muito respeitado, venerado e canonizado pela Igreja Romana, por que devemos condenar os reformadores, que fizeram exatamente a mesma coisa que Cipriano, em condenar as tradições não-bíblicas da Igreja Romana e até mesmo o próprio papa por levar adiante essas tradições?

 

Outro Pai da Igreja que tem seus escritos constantemente violentados pelos romanistas, que tiram frases do contexto para empurrar abaixo seu próprio conceito de “tradição”, e não o do autor, é Basílio de Cesareia. Ele disse que a tradição dos Pais segue o sentido da Escritura e a evidência bíblica:

 

“O que nossos pais disseram é o mesmo que dizemos, que a glória do Pai e do Filho é a mesma; portanto nós oferecemos a doxologia ao Pai e ao Filho. Mas nós não descansamos apenas no fato de que essa é a tradição dos Pais; pois eles também seguiram o sentido da Escritura, e começaram a partir da evidência Escrituristica que eu expus a você[19]

 

Quando se tratava da doxologia ao Pai e ao Filho, que envolvia doutrina, Basílio diz que a tradição dos Pais está nas Escrituras, e não fora dela. As únicas tradições que estavam fora das Escrituras na opinião de Basílio eram aquelas que envolviam apenas costumes, e não doutrinas; e costumes que, por sinal, nem os próprios católicos romanos observam hoje em dia, como orar com o rosto voltado ao Oriente ou batizar na água três vezes[20]. Veremos mais sobre isso no tópico seguinte, que abordará as tradições dos Pais relativas aos costumes.

 

Jerônimo também fala de uma tradição que tem sua fonte nas Escrituras. Ele diz:

 

“Na verdade, as tradições proferidas pelos apóstolos foram tomadas por eles a partir do Antigo Testamento; bispos, presbíteros e diáconos ocupam na Igreja as mesmas posições que foram ocupadas por Arão, seus filhos e os levitas no templo”[21]

 

Hilário de Poitiers também confirma que a tradição que envolve doutrinas é uma tradição puramente bíblica. Ele diz:

 

“Nós acreditamos, em conformidade com a tradição apostólica e evangélica, em um Deus, o Pai Todo-Poderoso, o Criador e Ordenador de todas as coisas, para quem são todas as coisas”[22]

 

O que Hilário afirmava “em conformidade com a tradição apostólica” é algo presente claramente nas Escrituras, e não fora da Bíblia. João Cassiano acrescenta que “nós recebemos isso da tradição dos pais, sendo desenhado a partir da fonte da Sagrada Escritura”[23]. A tradição provém da Bíblia, e não o contrário!

 

Este conceito, de que as tradições que envolviam doutrina tinham que estar de acordo com as Escrituras, era notável nos escritos dos primeiros cristãos. Eusébio de Cesareia, por exemplo, se mostrou contrário às tradições não-escritas preservadas por Papias:

 

“O próprio Papias conta também outras coisas como tendo chegado a ele por tradição não escrita, algumas estranhas parábolas do Salvador e de sua doutrina, e algumas outras coisas ainda mais fabulosas... eu creio que Papias supõe tudo isto por haver derivado das explicações dos apóstolos, não percebendo que estes haviam-no dito figuradamente e de modo simbólico”[24]

 

Se tudo aquilo que foi ensinado oralmente fosse considerado regra de fé pelos primeiros cristãos, Eusébio iria aceitar sem hesitações a tradição oral preservada por Papias, assim como ele aceitava a autoridade das Escrituras. Mas ele se opõe à tradição oral, exatamente por não encontrar nela fundamento bíblico suficiente, desacreditando naquela tradição. Isso nos mostra, mais uma vez, que um ensino pregado oralmente não era aceito sem que antes se confirmasse a base bíblica.

 

Ele também dizia que havia tradições que corrompiam a Igreja:

 

”O mesmo escritor [Hegesipo] nos explica o início das heresias de seu tempo nestes termos: ‘E depois que Tiago o Justo sofreu o martírio, o mesmo que o Senhor e pela mesma razão, seu primo Simeão, o filho de Clopas, foi constituído bispo. Todos o haviam proposto, por ser o outro primo do Senhor. Por esta causa chamavam virgem à Igreja, pois ainda não havia se corrompido com vãs tradições’”[25]

 

Hilário acrescenta que “devemos estar em guarda contra a filosofia e os métodos que repousam sobre as tradições dos homens”[26]. Agostinho rejeitou o tipo de tradição que coloca de lado os mandamentos de Deus:

 

“'Ele, porém, respondendo, disse: Toda planta que meu Pai celeste não plantou será arrancada, Deixe-os, são condutores cegos, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova’. A razão disso foi que, em seu desejo de observar suas próprias tradições, eles não entenderam os mandamentos de Deus”[27]

 

Em suma, o ensino de que a tradição dizia respeito a doutrinas fora da Bíblia é ilusão e invenção de Roma. Na Igreja Romana, a “tradição” é simplesmente um bode expiatório para onde todas as suas doutrinas não-bíblicas são levadas. O que não está na Bíblia, “está na tradição”, dizem eles. Mas em qual tradição? Quando foi que um Pai da Igreja sustentou uma doutrina puramente pela força da tradição? Quando foi que uma doutrina fora das Escrituras foi crida pelos Pais por fazer parte de uma “tradição oral”?

 

Estes exemplos nenhum romanista é capaz de mostrar, porque nenhum deles é capaz de obter. A tradição no sentido romano torna-se meramente uma palavra evasiva e mágica que engloba todas as doutrinas não-bíblicas que eles creem. O mórmon poderia fazer o mesmo e dizer que a vinda de Jesus às Américas “está na tradição”. Mas em que tradição? Onde? Quando? Quem disse? Eles não estão preocupados em responder estas perguntas, mas simplesmente empurram um conceito distorcido que somente na imaginação deles é que contém todas as doutrinas não-bíblicas que eles precisam crer.

 

 

• A Trindade é fruto da tradição oral?

 

No desespero em conseguirem mostrar uma única doutrina fora das Escrituras que supostamente foi defendida exclusivamente com base em uma tradição oral, os romanistas são rápidos em citarem a Santíssima Trindade. Para eles, a Trindade é uma prova de que os Pais aceitavam doutrinas fora da Bíblia, porque a Trindade não seria bíblica. Eles não teriam chegado à conclusão de que Deus é um em três a partir das Escrituras, e sim a partir de fontes extra-bíblicas, ou seja: na “tradição”.

 

Esta afirmação é tão grosseiramente falsa que só podemos crer que quem alega uma coisa dessas é ou ignorante ou dissimulado. Ou ele nunca leu escrito nenhum dos Pais da Igreja – e neste caso afirma algo sem conhecimento de causa, ou seja, é desonesto – ou ele sabe que os Pais da Igreja provavam a Trindade pela Bíblia e mesmo assim insiste em manter essa mentira de pé para ter algum argumento – o que faz dele um mentiroso. O fato é que todos os Pais que falaram sobre a Trindade, sem qualquer exceção, a provaram pela Bíblia, e não por fontes extra-bíblicas. Nenhum deles jamais disse que “a Trindade não está nas Escrituras, mas nós cremos mesmo assim porque recebemos tal ensino oralmente”.

 

Ao contrário, o que Agostinho fez foi provar a Trindade pela Bíblia, assim como os que viveram antes dele:

 

“Todos esses católicos expositores das divinas Escrituras, tanto do Antigo como do Novo Testamento, a quem eu tenho sido capaz de ler, que escreveram antes de mim sobre a Trindade, de acordo com as Escrituras, atestaram esta doutrina, de que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma íntima e divina unidade de uma única e mesma substância em uma igualdade indivisível”[28]

 

Ele não diz que eles “escreveram sobre a Trindade de acordo com uma tradição oral”, mas sim que eles “escreveram sobre a Trindade de acordo com as Escrituras”. Para Agostinho, a Trindade era suficientemente demonstrada pela Bíblia:

 

“A Trindade é suficientemente demonstrada de acordo com a fé da Sagrada Escritura”[29]

 

Agostinho escreveu um livro inteiro sobre a Trindade, e em nenhum momento ele diz que a Trindade é um exemplo de uma doutrina extraída fora das Escrituras, pela tradição oral. Ao contrário: ele cita dezenas de testemunhos bíblicos que comprovam a Trindade e diz que ela deveria ser provada pela autoridade das Escrituras:

 

“E se esta é a Trindade, agora cabe demonstrar aos crentes por autoridade da Escritura divina”[30]

 

Ele também diz provar pela Bíblia que o Espírito Santo é Deus:

 

“Vejo que o meu argumento neste livro com respeito ao Espírito Santo, de acordo com a Sagrada Escritura, é o bastante para homens fieis que sabem já que o Espírito Santo é Deus, e não de outra substância, nem menos do que o Pai e o Filho como temos demonstrado ser verdade nos livros anteriores, de acordo com as mesmas Escrituras[31]

 

O mesmo que Agostinho fez, ao escrever um livro inteiro provando a Trindade com argumentos bíblicos, foi seguido de perto por muitos outros Pais que escreveram sobre a Trindade antes e depois dele. Gregório de Nissa escreveu uma obra para Eustáquio chamada “Da Santíssima Trindade e da Divindade do Espírito Santo”. Gregório Taumaturgo escreveu uma obra “Sobre a Trindade”, assim como Hilário de Poitiers, com uma obra do mesmo título. Novaciano escreveu um “Tratado sobre a Trindade”, e a obra “Contra Práxeas” de Tertuliano possui a mesma finalidade.

 

Nenhum deles disse que a Trindade não podia ser provada pela Bíblia, ou que fosse uma crença proveniente de uma tradição oral. Todos eles se esforçaram grandemente em provar por diversos textos bíblicos que o Pai é Deus, Jesus Cristo é Deus, o Espírito Santo é Deus e que Deus é um. A Trindade, para eles e para os demais cristãos, era uma crença bíblica, deduzida das Escrituras, completamente fundamentada pelos escritos apostólicos.

 

Dionísio de Roma disse que “de fato a Trindade é declarada na Escritura divina, mas a doutrina de que há três deuses não é ensinada nem no Antigo nem no Novo Testamento”[32]. Gregório Taumaturgo concluiu sua obra mostrando as razões pelos quais os cristãos criam na Trindade, e citando apenas os testemunhos da Sagrada Escritura como prova:

 

“Por isso nós acreditamos na santa trindade, de acordo com estes testemunhos da Sagrada Escritura”[33]

 

Em síntese, o argumento católico de que a Trindade é um exemplo de uma doutrina fora das Escrituras que os Pais da Igreja creram puramente por meio de uma tradição oral é somente um blefe – e um blefe bem mal feito. A Trindade, como toda e qualquer doutrina, era crida exatamente por estar na Escritura, e não à parte das Escrituras. Isso tudo confirma a afirmação de Hans von Campenhausen, uma das maiores autoridades em patrística do século passado:

 

“A tradição da Igreja não é mais um fator independente ao lado das Escrituras: ela simplesmente confirma o testemunho da Bíblia”[34]

 

 

• Tradições como costumes

 

Já vimos que os Pais da Igreja rejeitavam qualquer doutrina que não estivesse na Bíblia. Costumes não são doutrinas, e por isso mesmo não estão incluídos no conceito de Sola Scriptura, que é o de que todas as doutrinas tem que estar na Bíblia. As igrejas da Reforma também tinham (e tem) seus próprios costumes, isto é, suas próprias tradições. Cada uma tem seu próprio hinário e liturgia, algumas possuem regras sobre vestimentas, cabelos, joias ou barba, e assim por diante. Costumes em nada afetam o princípio da Sola Scriptura, porque não são doutrinas, não são “regras de fé”. O que é costume em uma igreja pode não ser em outra, e costumes variam com o tempo, de acordo com cada povo e com cada cultura.

 

Costumes também existiam nas igrejas dos primeiros séculos de Cristianismo, e esses costumes, que em nada tinham a ver com doutrina, também eram chamados de “tradição”. A tradição, quando aplicada neste sentido, dizia respeito aos costumes de cada lugar e não à doutrina. Infelizmente, alguns romanistas tiram a palavra “tradição” de um contexto onde estão sendo abordados os costumes para tentar colocar no lugar a tradição deles. Eles cortam frases, tiram do contexto, isolam as citações, truncam passagens em um verdadeiro jogo de manipulação.

 

Talvez o Pai da Igreja que tenha sido mais grosseiramente distorcido neste sentido foi Basílio de Cesareia. Ele falou sobre a tradição exatamente neste sentido. Os católicos romanos amam citar um trecho em que ele diz:

 

“Da crenças e práticas preservados pela Igreja, alguns de nós possuímos ensinamento escrito e outros recebemos da tradição dos apóstolos, transmitidos pelo mistério. Com respeito à observância, ambos são da mesma força”[35]

 

O trecho acima está cortado, da mesma forma que os católicos apresentam em seus sites apologéticos na internet. Lendo apenas este trecho, não é possível saber o que era essa tradição que ele se refere, apenas é possível saber que ele observava o ensinamento escrito e outras coisas que provém da tradição. Mas o que seriam essas outras coisas, que não foram escritas? O católico que interpola este texto o faz propositalmente na intenção de passar a ideia de que Basílio estava falando de doutrinas. Ele sabe que, se ele passar o texto completo ao leitor, este irá perceber que tudo o que estava em jogo não passava de costumes.

 

Vejamos o texto completo:

 

“Da crenças e práticas preservados pela Igreja, alguns de nós possuímos ensinamento escrito e outros recebemos da tradição dos apóstolos, transmitidos pelo mistério. Com respeito à observância, ambos são da mesma força. Ninguém que seja versado mesmo um pouco no proceder eclesiástico, deverá contradizer qualquer um deles, em nada. Na verdade, se tentarmos rejeitar os costumes não escritos como não tendo grande autoridade, estaríamos inconscientemente danificando os Evangelhos em seus pontos vitais; faríamos de nossa definição pública uma mera frase e nada mais”[36]

 

Como vemos, essa parte não-escrita que Basílio se refere como fazendo parte da tradição diz respeito aos costumes, e não à doutrina. Ele não diz que nós possuímos “doutrinas não escritas”, mas “costumes não escritos”. E ele prossegue citando exatamente quais eram esses costumes que ele se referia, como sendo fruto de tradição não-escrita:

 

“Por exemplo, partindo do exemplo inicial e mais generalizado, quem ensinou por escrito a fazer o sinal da cruz àqueles que acreditavam em nosso Senhor Jesus Cristo? Que escrito nos ensinou a fazermos nossa oração voltados para o Oriente? Qual dos santos nos deixou por escrito as palavras de invocação de erguer o pão da eucaristia e o cálice da bênção? (...) Além disso, abençoamos a água do batismo e o óleo da crisma, bem como o catecúmeno que está sendo batizado. Com base em que autoridade escrita fazemos isso? Nossa autoridade não é a tradição silenciosa e mística? E não apenas isso, por meio de qual palavra escrita a própria unção com óleo foi ensinada? E de onde vem o costume de batizar três vezes?[37]

 

Não há nenhum ponto doutrinário aqui. Tudo não passa de costumes, sendo eles:

 

• O sinal da cruz.

• A oração voltada ao Oriente.

• Erguer o pão da eucaristia.

• Abençoar a água do batismo.

• O ato de batizar três vezes.

 

O mais irônico de tudo isso não é apenas o fato de que nenhuma doutrina foi citada, mas principalmente que, da lista oferecida por ele, nem os próprios católicos romanos praticam tudo isso! Qual é o romanista que faz as suas orações com o rosto voltado ao Oriente? Qual é o padre que batiza três vezes na água? Onde é que a Igreja Romana obriga tudo isso? Nem ela própria pratica a tradição de Basílio, e eles ainda querem ter moral para citarem a tradição de Basílio contra os protestantes! Se isso não é desonestidade intelectual em seu máximo nível, eu não sei o que é!

 

Como James White assevera:

 

“Notamos com alguma ironia que Roma não acredita que Basílio esteja certo em suas alegações nessa passagem. Roma diz que devemos voltar a face para o Oriente em oração? Roma insiste no batismo trino à maneira oriental? Entretanto, essas são as práticas que Basílio define como sendo oriundas da ‘tradição’”[38]

 

Até o arcipestre da Igreja Ortodoxa, George Florovsky, reconhece que a tradição citada por Basílio era meramente uma referência aos costumes na Igreja, e não à doutrina. Ele disse:

 

“À primeira vista, pode-se ter a impressão que São Basílio introduz aqui uma dupla autoridade e um duplo padrão – Escrituras e Tradição. Mas, na verdade, ele estava muito longe de fazer isso. Seu uso de termos é que é peculiar. Kerygmata era para ele o que no idioma posterior era usualmente entendido como ‘dogmas’ ou ‘doutrinas’ – um ensinamento e regras formais e autoritativos em matérias de fé, ensinamento aberto ou público. De outro lado, dogmata era o complexo total de ‘hábitos não-escritos’ (τα αγραφα των εθνων), ou, de fato, a estrutura toda da vida litúrgica e sacramental”[39]

 

O próprio Basílio fazia questão de ressaltar que os costumes não eram para serem vistos como lei e regra ortodoxa, e que as disputas doutrinárias eram para serem resolvidas na Escritura:

 

“A queixa deles é que seu costume não aceita isso e que a Escritura não o corrobora. Qual é minha réplica? Não considero justo que o costume que se adota entre eles deva ser visto como lei e regra ortodoxa. Se o costume tem de ser considerado como prova do que é correto, então ele é certamente idôneo para que eu passe a colocar ao meu lado o costume consagrado. Se eles rejeitarem isso, não estamos decididamente forçados a segui-los. Portanto, deixemos que a Escritura inspirada por Deus decida entre nós; e em qualquer lado que forem encontradas doutrinas em harmonia com a Palavra de Deus, será lançado em favor delas o voto de confiança[40]

 

Tertuliano foi outro que falou sobre tradição, mas apenas no mesmo sentido expresso por Basílio: costumes. Ele disse:

 

“Todas as vezes que iniciamos ou terminamos alguma coisa, todas as vezes que entramos ou saímos de casa, quando nos vestimos, nos calçamos, vamos tomar banho, nos pomos à mesa, acendemos as luzernas, vamos para a cama, nos sentamos, qualquer que seja a ocupação para a qual nos preparamos, façamos frequentemente na nossa testa um pequeno sinal da cruz. Para estas e outras semelhantes praxes da disciplina cristã, se tu pretendes normas bíblicas, não encontrarás nenhuma. Sobre a sua fonte te será antes mostrado a tradição que causou a origem delas, o costume que motivou a continuidade delas e a fidelidade que leva a observá-las”[41]

 

Era a “praxe”, e não a doutrina, que não tinha norma bíblica. Eram os costumes, e não os pontos de fé, o que estava em jogo. Nem os próprios papistas seguem à risca essa tradição de Tertuliano. Cada um tem seu próprio estilo de vida. Mas alguns católicos cortam a última parte do texto, tirando-a de seu contexto, o que pode passar um sentido completamente diferente daquilo que ele dizia.

 

Já naquela época, os costumes não eram os mesmos em todas as igrejas. Sócrates de Constantinopla (380-450) também falava muito sobre isso. Ele disse que os cristãos de Alexandria e Roma tinham um costume diferente dos cristãos do resto do mundo por causa de uma tradição distinta:

 

“Pois, embora quase todas as igrejas de todo o mundo celebram os sagrados mistérios no sábado de cada semana, os cristãos de Alexandria e de Roma, por conta de alguma antiga tradição, deixaram de fazer isso”[42]

 

Ele também fala que em Antioquia houve o costume (tradição) do canto responsivo, por causa de uma visão obtida por Inácio de Antioquia:

 

“Devemos agora, porém, fazer alguma alusão à origem deste costume na igreja do canto responsivo. Inácio, terceiro bispo de Antioquia, na Síria, a partir do apóstolo Pedro, e que tinha ligação com os apóstolos, teve uma visão de anjos cantando diante da Santa Trindade. Assim, ele introduziu o modo de cantar que ele tinha observado na visão para a Igreja de Antioquia, de onde foi transmitida pela tradição para todas as outras igrejas”[43]

 

Sozomen (400-450) foi outro que minimizou o valor dos costumes e lembrou a disputa que houve entre a igreja de Roma e de Esmirna no século II, por causa de tradições diferentes que resultaram em costumes distintos:

 

“Parece-me que Victor, bispo de Roma, e Policarpo, bispo de Esmirna, chegaram a uma decisão muito sábia sobre a controvérsia que surgiu entre eles. Pois os bispos do Ocidente não consideraram desonrar a tradição transmitida a eles por Pedro e por Paulo, e como, por outro lado, os bispos asiáticos persistiram em seguir as regras estabelecidas pelo evangelista João, por unanimidade concordaram em continuar na observância do festival de acordo com seus respectivos costumes, sem separação de comunhão uns com os outros. Eles fielmente e com justiça decidiram que não deveriam se separar um do outro por causa de costumes”[44]

 

A tradição dos cristãos de Esmirna era conflitante à tradição dos cristãos de Roma, mas eles mantiveram a mesma tradição mesmo assim, porque sabiam que eram meros costumes que estavam em pauta, algo que não tem peso para apartar irmãos de uma fé comum. Eles não tiveram que se submeter à tradição de Roma, porque cada comunidade cristã tinha seus próprios costumes que lhes eram peculiares.

 

João Damasceno acentua o costume já ressaltado em Basílio sobre adorar em direção ao leste, que ele chama de tradição apostólica não-escrita:

 

“Não é sem razão ou por acaso que nós adoramos em direção ao leste (...) Na expectativa da Sua vinda nós adoramos em direção ao leste, mas essa tradição dos apóstolos não é escrita”[45]

 

Jerônimo foi outro que falou sobre tradições no sentido de costumes. Sobre os monges, ele diz que “no Pentecoste eles trocam a sua refeição da noite para o meio-dia, para satisfazer a tradição da Igreja”[46]. Ele também diz que “nós, de acordo com a tradição apostólica, temos uma Quaresma anual, enquanto eles mantêm três no ano como se três salvadores houvessem sofrido”[47]. Assim como Basílio e Tertuliano, ele também cita algumas tradições não-escritas observadas por eles, sempre sendo apenas costumes:

 

“Pois muitas outras observâncias das igrejas, que são devidas à tradição, adquiriram autoridade de lei escrita, como, por exemplo, a prática de mergulhar a cabeça três vezes na pia, e, depois de sair da água; da degustação misturada de leite e mel, em representação da infância; e, novamente, as práticas de pé no culto no dia do Senhor, e jejuar todos os dias do Pentecostes; e há muitas outras práticas não escritas que ganharam o seu lugar através da razão e do costume[48]

 

A maioria das práticas citadas acima por Jerônimo não são observadas pelos católicos de hoje. São costumes, e costumes não são imutáveis como a doutrina, mas variam de acordo com o povo, o tempo e a cultura local. Não há nenhuma ligação entre essas práticas e a doutrina. Essas práticas eram seguidas por tradição não-escrita, ao passo em que a doutrina, como vimos, era seguida pelas Escrituras. Jerônimo também cita a divergência sobre os costumes nas igrejas e diz que cada igreja local deve preservar suas próprias tradições quando não são contrárias à fé:

 

“Você me pergunta se você deve jejuar no sábado para receber a eucaristia diária de acordo com o costume, como atualmente é vigente nas igrejas de Roma e Espanha. Ambos os pontos foram tratados pelo eloquente Hipólito, e vários escritores coletaram passagens a partir de diferentes autores que falam sobre isso. O melhor conselho que eu posso dar é este: as tradições das igrejas,, especialmente quando não são contrárias à fé, devem ser observadas na forma em que as gerações anteriores nos entregaram”[49]

 

A concepção de tradição em Agostinho segue de perto tudo isso, pois ele diz:

 

“Quanto a essas outras coisas que mantemos com a autoridade, não da Escritura, mas da tradição, e que são observadas por todo o mundo, pode-se entender que elas são mantidas como aprovadas e instituídas ou pelos apóstolos ou pelos concílios, dentre elas a comemoração anual por especiais solenidades, da Paixão do Senhor, da ressurreição e ascensão, da descida do Espírito Santo do Céu e tudo o que está na forma como é observado por toda a Igreja, onde quer que tenha sido estabelecida”[50]

 

Ao citar os exemplos de tradições que ele se referia, ele menciona apenas costumes, comemorações, solenidades. Ele não cita uma vírgula da doutrina.

 

 

• Tradições como dados históricos

 

Outro tipo de tradição muito usada pelos Pais é naquilo que se refere a dados históricos. Quando algum dado histórico era preservado pelos antigos, era dito que aquilo fazia parte da “tradição”. Agostinho diz que Jesus “nasceu, de acordo com a tradição, após o dia 25 de Dezembro”[51]. Ele também diz que é “por isso que o aniversário em que celebramos a Paixão do Senhor não cai, como no dia em que a tradição foi transmitida como o dia do seu nascimento, no mesmo dia todo ano”[52].

 

Jerônimo aponta a tradição que diz que Adão viveu e morreu no Calvário, o mesmo lugar onde o Senhor Jesus foi crucificado, e que é lá onde se encontra o seu crânio, dando razão ao nome:

 

“A tradição diz que nesta cidade, ou melhor, neste mesmo lugar, Adão viveu e morreu. O lugar onde nosso Senhor foi crucificado é chamado Calvário, porque o crânio do homem primitivo foi enterrado lá”[53]

 

Ele também relata a tradição segundo a qual Tiago foi de grande santidade e reputação:

 

“Este mesmo Josefo registra a tradição de que este Tiago foi de tão grande santidade e reputação entre as pessoas que a queda de Jerusalém acredita-se que foi por conta de sua morte”[54]

 

Eusébio era o que mais falava deste tipo de tradição. Sempre quando ele citava algum dado histórico, ele dizia que aquilo era uma tradição. Ele relata, por exemplo, que Pilatos se suicidou pouco tempo depois da morte de Jesus:

 

“Não se deve ignorar uma tradição que nos conta como também o mesmo Pilatos dos dias do Salvador viu-se envolto em tão grandes calamidades nos tempos de Caio – cuja época foi explicada –, que se viu forçado a suicidar-se e converter-se em carrasco de si mesmo: a justiça divina, ao que parece, não tardou muito em alcançá-lo. Também os gregos que deixaram escritas as séries de olimpíadas junto com os acontecimentos de cada época a isto se referem”[55]

 

Ele também relata a tradição que fala sobre os últimos dias da vida de Paulo:

 

“É pois tradição que o apóstolo, depois de haver pronunciado sua defesa, partiu novamente para exercer o ministério da pregação e que, tendo voltado pela segunda vez à mesma cidade, terminou sua vida com o martírio, nos tempos do mesmo imperador [Nero]”[56]

 

Ele também diz que, segundo a tradição, João foi condenado à prisão na ilha de Patmos na época do imperador romano Domiciano:

 

“É tradição que, neste tempo [do imperador Domiciano], o apóstolo e evangelista João, que ainda vivia, foi condenado a habitar a ilha de Patmos por ter dado testemunho do Verbo de Deus”[57]

 

Em Eusébio seguem vários outros exemplos de tradições como dados históricos, que os evangélicos também não discordam, e que também não afetam em nada o princípio cristão ortodoxo da Sola Scriptura.

 

 

• Tradições interpretativas da Bíblia

 

O quarto e último tipo de tradição existente nos Pais é quando eles aplicavam o termo “tradição” para uma interpretação tradicional da Igreja da época. Cirilo de Jerusalém, por exemplo, afirmou:

 

“'O quarto animal será um quarto reino na terra, o que deve superar todos os reinos’ (Dn.7:23). Esse é o reino dos romanos, o que tem sido a tradição dos intérpretes da Igreja. Porque o primeiro reino que se tornou famoso foi o dos assírios, e o segundo o dos Medos e Persas, e após estes os macedônios, de modo que o quarto reino agora é o dos romanos”[58]

 

Em outras palavras, que o quarto reino era o dos romanos, isso era um consenso na época, e, por isso mesmo, uma “tradição”. Obviamente, só se pode fazer interpretação da Bíblia de coisas que estão na Bíblia. Contudo, nem em todas as coisas havia consenso, e mesmo naquelas coisas que os Pais concordavam unanimemente não havia uma “palavra final” desta tradição, pois eles poderiam estar errados, como nos conta Agostinho:

 

“Pois os raciocínios de qualquer homens que seja, mesmo que seja católico e de alta reputação, não é para ser tratado por nós da mesma forma que a Escritura canônica é tratada. Estamos em liberdade, sem fazer qualquer ofensa ao respeito que estes homens merecem, para condenar e rejeitar qualquer coisa em seus escritos, se por acaso vemos que eles têm tido opiniões divergentes daquela que os outros ou nós mesmos temos, com a ajuda divina, descoberto ser a verdade. Eu lido assim com os escritos de outros, e eu gostaria que meus inteligentes leitores lidassem assim com os meus[59]

 

“Nos inúmeros livros que foram escritos ultimamente podemos às vezes encontrar a mesma verdade como está na Escritura, mas não é a mesma autoridade. A Escritura tem uma sacralidade peculiar a si mesma. Em outros livros, o leitor pode formar sua própria opinião, e, talvez, de não concordar com o escritor, por ter uma opinião diferente da dele, e pode pronunciar em favor do que ele escreve, ou contra o que ele não lhe agrada. Mas, em conseqüência da peculiaridade distintiva das Sagradas Escrituras, somos obrigados a receber como verdadeira qualquer coisa que tenha sido dita por um profeta, ou apóstolo, ou evangelista”[60]

 

Em outras palavras, mesmo nas questões onde havia um consenso dos Pais sobre uma determinada passagem bíblica, que poderia ser considerado a interpretação tradicional, a palavra final e autoritativa continuava sendo da Bíblia. Os Pais podiam estar errados, mas a Escritura seguiria sendo completa e verdadeira, a autoridade suprema e final em matéria de fé. A interpretação tradicional dos Pais, portanto, deve ser respeitada, mas não tomada como infalível ou sacra em si mesma.

 

 

• Últimas considerações

 

Vimos que aquilo que os católicos romanos chamam de “tradição” não tem absolutamente qualquer ligação com a verdadeira tradição apostólica, pregada pelos Pais. Ela em nada afeta o princípio bíblico e patrístico da Sola Scriptura, da Bíblia como a única autoridade em matéria de doutrina. A tradição crida pelos Pais não altera em nada as suas centenas de declarações enfáticas da Bíblia como a única regra de fé, que já vimos no capítulo anterior.

 

A tradição de Roma não é a tradição apostólica, mas uma adulteração daquilo que era a tradição nos primeiros séculos. A tradição romana serve como um mero bode expiatório para onde o católico joga nas costas toda e qualquer doutrina que não encontre suficiente base bíblica. O apelo papista à tradição tem se mostrado inútil quando deparado com o ensino real dos Pais da Igreja. O esforço dos apologistas católicos, no mesmo sentido, tem apenas demonstrado o baixo nível de pessoas que precisam corromper o sentido dos textos e isolar passagens para fazer parecer que a tradição dos Pais era a mesma coisa da tradição da Igreja Romana atual.

 

Como James White disse, “no processo de atacar a Sola Scriptura, os apologistas romanos se veem forçados a deturpar perversamente os materiais patrísticos e a comprometer-se com o que chamo de ‘interpretação anacrônica’, a leitura das antigas fontes, conceitos e ideias que em nenhuma hipótese faziam parte do contexto original”[61].

 

Infelizmente, muitos leigos têm sido enganados pelo baixo nível da apologética católica e tem crido em uma tradição falsificada baseando-se em textos patrísticos que falavam em outro tipo de tradição completamente diferente. Muitos nem ao menos se esforçam em descobrir pelo contexto que tipo de tradição estava sendo referida, preferindo crer cegamente que, por se tratar de uma mesma palavra, tem o mesmo conceito.

 

Ao distorcerem o sentido real da tradição, os romanistas caem no mesmo equívoco dos espíritas com a palavra espírito, dos imortalistas com a palavra alma e dos muçulmanos com o Consolador. Uma mesma palavra, com sentidos diferentes – e, neste caso, com um sentido oposto ao original. Um truque para enganar leigos; um fracasso contra uma apologética séria.

 

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

 

Por Cristo e por Seu Reino,

Lucas Banzoli.

 



[1] WHITE, James. Sola Scriptura: Numa época sem fundamentos, o resgate do alicerce bíblico. Editora Cultura Cristã: 2000, p. 38.

[2] Contra as Heresias, Livro III, 3:3.

[3] Contra as Heresias, Livro I, 10:1-2.

[4] WHITE, James. Sola Scriptura: Numa época sem fundamentos, o resgate do alicerce bíblico. Editora Cultura Cristã: 2000, p. 40.

[5] Contra as Heresias, Livro III, 3:3.

[6] Contra as Heresias, Livro III, 5:1.

[7] Contra as Heresias, Livro I, 8:1.

[8] Contra as Heresias, Livro III, 2:1.

[9] Da Hierarquia Celeste, 4.

[10] Da Hierarquia Celeste, 14.

[11] To Serapion, 1, 28.

[12] To Serapion, 1, 28.

[13] Letter 2, 6.

[14] Contra Serapião, 33.

[15] Letter 60, 6.

[16] Epístola 74.

[17] Epístola 71.

[18] Epístola 74.

[19] Do Espírito Santo, 7.

[20] Do Espírito Santo, 66.

[21] Letter 146, 2.

[22] On the Councils, 29.

[23] Conferência 8, 6.

[24] História Eclesiástica, Livro III, 39:11-12.

[25] História Eclesiástica, Livro IV, 22:4.

[26] Sobre a Trindade, Livro XII, 20.

[27] Contra Fausto, Livro XVI, 21.

[28] Sobre a Trindade, Livro I, 7.

[29] Sobre a Trindade, Livro XII, 5.

[30] Sobre a Trindade, Livro XV, 1.

[31] Sobre a Trindade, Livro XV, 20.

[32] Contra os Sabelianos, 1.

[33] A Sectional Confession of the Faith, 23.

[34] Hans von Campenhausen, Os Pais da Igreja, p. 27.

[35] Do Espírito Santo, 66.

[36] Do Espírito Santo, 66.

[37] Do Espírito Santo, 66.

[38] WHITE, James. Sola Scriptura: Numa época sem fundamentos, o resgate do alicerce bíblico. Editora Cultura Cristã: 2000, p. 42.

[39] FLOROVSKY, George. Sobre Igreja e Tradição – Uma Visão Ortodoxa e Oriental.

[40] NPNF, Série II, VIII:229.

[41] La Corona, Roma 1980, 3-4; pag. 153,155.

[42] História da Igreja, Livro V, 22.

[43] História da Igreja, Livro VI, 8.

[44] História Eclesiástica, Livro VII, 19.

[45] An Exposition of the Orthodox Faith, 12.

[46] Letter 22, 35.

[47] Letter 41, 3.

[48] The Dialogue Against the Luciferians, 8.

[49] Letter 71, 6.

[50] Letter 54, 1.

[51] Sobre a Trindade, Livro IV, 5.

[52] Letter 55, 1.

[53] Letter 46, 3.

[54] De Viris Illustribus, 2.

[55] História Eclesiástica, Livro II, 7:1.

[56] História Eclesiástica, Livro II, 22:2.

[57] História Eclesiástica, Livro III, 18:1.

[58] Leituras Catequéticas, 15:13.

[59] Letter 148, 4.

[60] Contra Fausto, Livro XI, 5.

[61] WHITE, James. Sola Scriptura: Numa época sem fundamentos, o resgate do alicerce bíblico. Editora Cultura Cristã: 2000, p. 54.

 

 

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