OS PAIS DA IGREJA CRIAM NA IMORTALIDADE DA ALMA?

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Que a imortalidade da alma não era uma crença adotada pelos primeiros Pais da Igreja, em especial os do século I até meados do século II d.C, isso fica evidente pela própria argumentação imortalista que sempre cita apenas os Pais de tempos bem posteriores, começando por Orígenes e avançando até Agostinho. Eles realmente não têm nenhuma prova irrefutável dessa doutrina que possa ser encontrada em qualquer obra de qualquer Pai da Igreja que tenha convivido mais de perto com os apóstolos. Neste artigo, portanto, irei provar resumidamente como que a patrística refuta a imortalidade incondicional da alma naquilo que tange aos primeiros séculos de Cristianismo.

 

Inácio de Antioquia (68 – 107 d.C) cria que seria encontrado como discípulo de Policarpo depois que a ressurreição tivesse sido consumada, e não imediatamente após a morte em algum estado intermediário:

 

”Uma vez que a Igreja de Antioquia da Síria está em paz, como fui informado, graças à vossa oração, fiquei mais confiante na serenidade de Deus, se com o sofrimento eu o alcançar, para ser encontrado na ressurreição como vosso discípulo (Carta de Inácio a Policarpo, 7:1)

 

Era na ressurreição – e não após a morte – que Inácio se reencontraria com Policarpo, e seria reconhecido como seu discípulo. O mesmo ele afirma aos cristãos de Éfeso:

 

”Fora dele [Jesus], nada tenha valor para vós. Eu carrego as correntes por causa dele. São as pérolas espirituais com as quais eu gostaria que me fosse dado ressuscitar, graças à vossa oração. Desta desejo sempre participar para me encontrar na herança dos cristãos de Éfeso, que estão sempre unidos aos apóstolos pela força de Jesus Cristo” (Inácio aos Efésios, 11:2)

 

Inácio queria se encontrar na herança dos cristãos de Éfeso, mas a pergunta que não quer calar é: “quando”? Qualquer imortalista responderia que seria logo após a morte e antes da ressurreição, quando supostamente a “alma imortal” de Inácio partiria para o Céu e se encontraria na sua herança, junto aos cristãos de Éfeso. Porém, Inácio diz claramente que seria na ressurreição que isso aconteceria! A crença de Inácio de que era somente na ressurreição dos mortos que os cristãos entram em sua herança celestial e se reencontram com os demais cristãos era crida também por Policarpo (69 – 155 d.C), contemporâneo de Inácio, que afirmou que a ressurreição não é somente do corpo (como creem os imortalistas), mas também da alma:

 

“Eu te bendigo por me teres julgado digno deste dia e desta hora, de tomar parte entre os mártires, e do cálice de teu Cristo, para a ressurreição da vida eterna da alma e do corpo, na incorruptibilidade do Espírito Santo” (O Martírio de Policarpo, 14:2)

 

Justino (100 – 165 d.C) foi ainda mais além e declarou que aqueles que criam que a alma vai para o Céu após a morte e antes da ressurreição nem sequer poderiam ser considerados cristãos, mas estariam no grupo daqueles que eram considerados «ímpios e hereges», que ensinavam «doutrinas que são em todos os sentidos blasfemas, ateístas e tolas»:

 

"Além disso, eu indiquei-lhe que há alguns que se consideram cristãos, mas são ímpios, hereges, ateus, e ensinam doutrinas que são em todos os sentidos blasfemas, ateístas e tolas. Mas, para que saiba que eu não estou sozinho em dizer isso a você, eu elaborarei uma declaração, na medida em que puder, de todos os argumentos que se passaram entre nós, em que eu devo registrá-las, e admitindo as mesmas coisas que eu admito a você. Pois eu opto por não seguir a homens ou a doutrinas humanas, mas a Deus e as doutrinas entregues por Ele. Se vós vos deparais com supostos Cristãos que não façam esta confissão, mas ousem também vituperar o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, e neguem a ressurreição dos mortos, sustentando antes, que no ato de morrer, as suas almas são elevadas ao céu, não os considereis Cristãos. Mas eu e os outros, que somos cristãos de bem em todos os pontos, estamos convictos de que haverá uma ressurreição dos mortos, e mil anos em Jerusalém, que será construída, adornada e alargada, como os profetas Ezequiel e Isaías e outros declaram" (Diálogo com Trifão, Cap.80)

 

O Diálogo com Trifão, escrito por Justino, é ainda mais interessante por ser apresentado em forma de diálogo. Nele, podemos ver as incoerências da crença de que a alma é imortal e também como que os primeiros cristãos contestavam essa crença de origem pagã. Por exemplo, Justino afirma que as almas dos homens são em tudo semelhante às almas dos animais:

 

Velho: E todas as almas de todos os seres vivos podem compreendê-Lo? Ou são as almas dos homens de um tipo e as almas dos cavalos e de jumentos de outro tipo?


Justino: Não. Mas as almas que estão em todos são semelhantes. (Capítulo 4)

 

Aqui Justino declara que as almas humanas não são diferentes das dos animais. Se lermos o relato da criação em Gênesis, vemos que ambos são descritos como sendo alma-nephesh (Gn.1:20,21,24,30; 2:19; 9:10,12,15,16; Lv.11:46). Alguns imortalistas, na tentativa de refutar este fato bíblico, tentam dizer que as almas dos animais são diferentes das almas humanas, pois a deles seria mortal, enquanto a nossa seria imortal. Isso é o que o homem velho estava dialogando com Justino, mas este nega que haja diferença entre ambas as almas, exatamente como prega a doutrina bíblica holista!

 

Mais a frente, vemos um interessante diálogo de Justino com o Velho, onde os dois discorrem sobre a natureza do universo e sobre o destino da alma após a morte. Desde que o universo lhes pareceu gerado (como a Bíblia ensina que foi), eles concluem que as almas não podem ser imortais, mas morrem após a morte do corpo:

 

Velho: Você diz que o mundo também é não-gerado?


Justino: Alguns dizem que sim. Eu, porém, não concordo com eles.


Velho: Você está certo, pois que razão alguém tem para supor que um corpo tão sólido, possuindo resistência, composto, mutável, em decomposição, e renovado a cada dia, não surgiu de alguma causa? Mas se o mundo é gerado, as almas necessariamente também são geradas, e talvez em algum momento elas não existam, porque elas foram feitas por conta dos homens e outros seres vivos, se você for dizer que eles foram gerados totalmente à parte, e não juntamente com seus respectivos órgãos.


Justino: Isso parece estar correto.


Velho: Não são, pois, imortais?


Justino: Não, desde que o mundo pareceu-nos ser gerado(Capítulo 5)

 

Justino afirma que as almas não são imortais, porque o universo foi gerado. Então, vem a parte que alguns imortalistas se utilizam, tirando-a de seu devido contexto, que é quando o velho que debate com Justino (e não o próprio Justino) afirma que as almas não morreriam completamente, mas as almas dos justos iriam para um “lugar melhor” após a morte, e as dos injustos iriam para um “lugar pior”, esperando o dia do julgamento. Já vi alguns imortalistas fazerem uso dessa passagem na intenção de passar a ideia de que Justino não cria que a alma morria após a morte, mas eles se esquecem de que foi o próprio Justino que corrigiu este pensamento do homem velho logo na sequencia do Diálogo:

 

Velho: Mas eu não digo, na verdade, que todas as almas morrem, para que fosse verdadeiramente um pedaço de boa sorte para o mal. E depois? As almas dos piedosos permanecem em um lugar melhor, enquanto as dos injustos e perversos estão em um lugar pior, esperando o momento do julgamento. Assim, alguns que tem sido dignos de serem apreciados por Deus nunca morrem, mas outros são punidos, desde que Deus quer que eles existam e sejam punidos.

 

Justino: O que você diz, então, é de uma natureza similar com o que Platão ensina sobre o mundo, quando ele diz que ele é realmente sujeito à decadência, na medida em que foi criado, mas que nem vai ser dissolvido, nem encontrar-se com o destino da morte por conta da vontade de Deus. Parece-lhe que o mesmo pode ser dito da alma, e em geral de todas as coisas? Para as coisas que existem depois de Deus, ou em qualquer momento existem, estas têm a natureza de decadência, e podem ser apagadas e deixarem de existir, pois só Deus é ingênito e imortal, e por isso mesmo Ele é Deus, mas todas as outras coisas criadas por Ele são corruptíveis. Por esta razão ambas as almas morrem, uma vez que, se fossem ingênitas, elas nem teriam pecado, nem seriam preenchidas com a loucura, e nem seriam covardes ou ferozes; nem seriam de bom grado se transformarem em porcos e as serpentes em cães, se fossem não-geradas.

 

Note que o homem Velho realmente propôs a imortalidade da alma a Justino, mas foi o próprio Justino quem refutou aquele pensamento logo em seguida, dizendo que o homem Velho estava pensando da mesma forma que Platão, de que o mundo não vai ser dissolvido, e de que o mesmo poderia ser aplicado com relação à alma (que não se dissolveria após a morte). Isso estaria errado pelo fato de que as coisas criadas por Deus tem uma natureza corruptível, e por essa razão “ambas as almas morrem”, isto é, tanto as almas dos homens como também as dos animais perecem após a morte, não são imortais como cria Platão. Mais adiante, Justino reitera mais uma vez que a alma deixa de existir após a morte, e que o homem não existe mais quando o espírito da vida é retirado dele, não existindo mais a alma:

 

“Sempre que a alma tem de deixar de existir, o homem não existe mais, o espírito da vida é removido, e não há mais alma, mas ele vai voltar para o lugar de onde foi feito” (Diálogo com Trifão, Cap.6)

 

Para Justino, quando Deus retira do homem o sopro de vida que Ele soprou originalmente nas narinas de Adão, o homem não existe mais, a alma deixa de existir e «não há mais alma»; o homem como um ser integral volta para o lugar de onde ele foi formado: o pó da terra. Por isso, a ressurreição é a única esperança para trazer o homem de volta à existência, como Justino também declara a Trifão:

 

Trifão: Diga-me, então, devem os que viviam de acordo com a lei dada por Moisés, viverem da mesma maneira com Jacó, Enoque, Noé, na ressurreição dos mortos, ou não? 

Justino
: Quando citei, senhor, as palavras ditas por Ezequiel, que, ”mesmo que Noé, Daniel e Jó estivessem nela, eles não poderiam livrar seus filhos e suas filhas, o pedido não lhes seria concedido", mas que cada um deve ser salvo pela sua própria justiça, disse também que aqueles que suas vidas foram reguladas pela lei de Moisés de igual modo devem ser salvos. Pois o que está na lei de Moisés é naturalmente bom, piedoso e justo, e foi prescrito a ser praticado por aqueles que devem obedecê-la, e foi designada para ser realizada em virtude da dureza dos corações do povo, e feita também para aqueles que estavam debaixo da lei. Desde aqueles que fizeram o que é universal, naturalmente, e eternamente bom é agradável a Deus, eles serão salvos por esse Cristo na ressurreição, em pé de igualdade com os homens justos que foram antes deles, ou seja, Noé e Enoque, e Jacó, e quem mais existir, juntamente com aqueles que conheceram esse Cristo, Filho de Deus, que foi a estrela da manhã e submeteu-se ao encarnar-se, e nascer desta virgem da família de Davi, a fim de que, por nesta dispensação, a serpente que peca desde o princípio e os anjos com ele possam ser destruídos, e que a morte possa ser desprezada, para sair eternamente, na segunda vinda de Cristo, aqueles que acreditam n'Ele e viveram aceitavelmente(Capítulo 45)

 

É tão claro como a luz do dia o fato de que Justino cria que seria na ressurreição (que acontece na segunda vinda de Cristo) que aqueles que já morreram (tais como Noé, Enoque e Jacó) iriam ser salvos e sair para a vida eterna. Por isso ele se regozijava da morte: não por pensar que tinha uma “alma imortal” que sobrevivesse conscientemente após a morte, mas por crer que Deus o ressuscitaria e o tornaria imortal nessa ressurreição:

 

“Mas nós nos regozijamos da morte, acreditando que Deus nos ressuscitará a nós pelo seu Cristo, e nos fará incorruptíveis, e intactos, e imortais, e sabemos que as ordenanças impostas em virtude da dureza dos corações do povo em nada contribuem para o desempenho da justiça e da piedade” (Diálogo com Trifão, Cap.46)

 

Por tudo isso, a vida eterna seria herdada somente após a santa ressurreição, e não antes dela:

 

“Ele [Josué] não apenas teve o seu nome alterado, como também foi sucessor de Moisés, sendo o único de seus contemporâneos que saiu do Egito, ele levou os sobreviventes para a Terra Santa e foi ele, e não Moisés, que conduziu as pessoas para a Terra Santa, e assim como ela foi distribuída por sorteio para os que entraram junto com ele, assim também Jesus Cristo virá novamente e distribuirá a boa terra para cada um, embora não da mesma maneira. Pois o primeiro [Josué] deu-lhes uma herança temporária, visto que ele não era nem Cristo, que é Deus, nem o Filho de Deus; mas este último [Jesus], após a santa ressurreição, nos dará a posse eterna (Diálogo com Trifão, Cap.113)

 

Os homens de todas as épocas que creram em Cristo e que viveram de acordo com a Palavra de Deus“estarão” {futuro} naquela terra, e “herdarão” {futuro} o eterno e incorruptível bem:

 

“E, portanto, todos os homens em todos os lugares, quer escravos ou livres, que creem em Cristo, e reconheceram a verdade em suas próprias palavras e dos Seus profetas, sabemos que eles estarão com ele naquela terra, e herdarão o eterno e incorruptível bem (Diálogo com Trifão, Cap.139)

 

Se Justino cresse que herdamos a vida eterna antes da ressurreição (no momento em que a alma “voa” para o Céu após a morte), então ele teria dito que os que já morreram já estão naquela terra prometida por Deus, e que já herdaram o eterno e incorruptível bem. O fato de ele colocar tudo no tempo futuro nos mostra mais uma vez que ele não cria na imortalidade da alma. A posse da vida eterna era vista como um acontecimento depois da ressurreição dos mortos, e não antes:

 

“E a Palavra, sendo o Seu Filho, veio até nós, tendo sido manifestado em carne, revelando tanto si mesmo como também o Pai, dando-nos a ressurreição dos mortos e, depois, a vida eterna (Justino, Tratado sobre a Ressurreição, Cap.1)

 

Por isso mesmo ele advogava a tese bíblica de que a ressurreição não é meramente do corpo, mas do corpo e da alma, pois tanto o corpo como a alma formam o homem, e consequentemente tanto o corpo como a alma morrem, e tanto o corpo como a alma ressuscitam na ressurreição:

 

“Pois o que é homem, senão um animal racional composto de corpo e alma? É a alma chamada de homem por si mesma? Não, mas é chamada a alma do homem. Será que o corpo pode ser chamado de homem? Não, mas é chamado o corpo do homem. Se, então, nenhum deles é por si só o homem, mas o que é composto dos dois juntos é chamado de homem, e Deus chamou o homem para a vida e ressurreição, Ele chamou não uma parte, mas o todo, que é a alma e o corpo” (Justino, Tratado sobre a Ressurreição, Cap.8)

 

“Se Ele não tinha necessidade da carne, por que Ele iria curá-la? E o que é o mais convincente de todos: Ele ressuscitou os mortos. Por quê? Não era para mostrar como a ressurreição deveria ser? Como, então, Ele ressuscitará os mortos? Suas almas ou os seus corpos? Manifestamente ambos (Justino, Tratado sobre a Ressurreição, Cap.9)

 

Arnóbio foi outro a declarar que a tese da imortalidade da alma era crida em sua época por“pensadores recentes e fanáticos”:

 

"Não há motivo, portanto, que nos engane, não há motivo que nos faça conceber esperanças infundadas aquele que se diz por alguns pensadores recentes e fanáticospela excessiva estima de si mesmos que, as almas são imortais (Arnóbio, op. cit., Liv. II, 14-15; pag. 51)

 

Essa é uma declaração enfática que nos leva a crer novamente que quando a imortalidade da alma entrou na Igreja não foi por ser pregada desde sempre pelos apóstolos, mas foi ao longo de umprocesso de desvio doutrinário, começando a ser pregada por apenas alguns “recentes”, que, influenciados pela filosofia grega platônica, trouxeram para dentro da Igreja o conceito pagão de que a alma seria imortal. Os pensadores da época que criam que a alma era imortal eram questionados pela sua própria infantilidade e ignorância em ver este assunto desta forma:

 

“Mas se você está realmente certo de que as almas dos homens são imortais e dotadas de conhecimento, quando elas voam para cá, deixe-me questionar a juventude que você vê as coisas pela sua ignorância, estando acostumado aos caminhos dos homens” (Arnóbio, Against the Heathen , Livro II, Cap.24)

 

Arnóbio enfatiza também que as almas não são incorpóreas, o que é outra base e fundamento da tese imortalista que é derrubada, juntamente com a crença de que elas seriam “imortais”:

 

“Além disso, o mesmo raciocínio não só mostra que elas [as almas] não são incorpóreas, mas também as privam de toda e qualquer imortalidade, e remete-as para os limites dentro dos quais a vida é normalmente fechada” (Arnóbio, Against the Heathen, Livro II, Cap.26)

 

Por fim, outros dois autores cristãos do segundo século d.C que são bem importantes para entendermos o pensamento presente na Igreja da época, são Teófilo de Antioquia (120 – 180 d.C) e Taciano, o Sírio (120 – 180 d.C), que são da mesma época, sendo que ambos eram filósofos e ambos discorreram amplamente sobre a ressurreição, sobre a natureza humana e sobre a vida após a morte. Começaremos por Teófilo, que escreveu três livros a Autólico, e disse:

 

“Ó homem, se compreenderes isso, e viveres de maneira pura, piedosa e justa, poderás ver a Deus. Antes de tudo, porém, entrem em teu coração a fé e o temor de Deus, e então compreenderás isso.Quando depuseres a mortalidade e te revestires da incorruptibilidade, verás a Deus de maneira digna. Com efeito, Deus ressuscitará a tua carne, imortal, juntamente com tua alma. Então, tornado imortal, verás o imortal, contanto que agora tenhas fé nele. Então reconhecerás que falaste injustamente contra ele” (Teófilo a Autólico, Livro I, Cap.7)

 

Acima constatamos três pontos principais. O primeiro, é que a natureza humana atual é mortal. A segunda, é que a alma ressuscita juntamente com o corpo, o que era uma crença comum no século d.C. E o terceiro, que é somente na ressurreição, quando o homem se torna imortal, que ele verá o imortal, Deus. A doutrina tardia da imortalidade da alma mudou tudo isso, pois prega que o ser humano possui atualmente a imortalidade na forma de uma alma imortal, ensina que a ressurreição é somente do corpo e também que veremos a Deus logo após a morte, antes mesmo da ressurreição. Quanta diferença disso para aquilo que os Pais da Igreja criam e ensinavam!

 

Outro fato que Teófilo nos mostra e que, como já vimos, é totalmente compatível com a Bíblia e com aquilo que disse Justino de Roma, é que os animais também são almas viventes:

 

“E disse Deus: ‘Que as águas produzam répteis de alma vivente e aves que voam sobre a terra debaixo do firmamento do céu’. E assim se fez. E Deus fez os monstros grandes do mar, e toda alma dos animais que se arrastam, que as águas produziram conforme suas espécies, e todo volátil alado segundo a sua espécie. E Deus viu que era bom. E Deus os abençoou, dizendo: ‘Crescei e multiplicaivos e enchei as águas do mar, e que as aves se multipliquem sobre a terra’. Houve tarde e houve manhã: quinto dia.E disse Deus: ‘Que a terra produza alma vivente conforme a sua espécie, quadrúpedes e répteis e feras da terra segundo a sua espécie’. E assim se fez. E Deus fez as feras da terra conforme a sua espécie e os animais segundo a sua espécie, e todos os répteis da terra” (Teófilo a Autólico, Livro II, Cap.11)

 

Depois que a doutrina pagã da imortalidade da alma ganhou força dentro do Cristianismo, ficou comum os teólogos da imortalidade negarem que os animais sejam ou possuam alma, e a grande maioria das traduções vertem os textos acima (a exemplo de outros onde aparece nephesh para os animais) como “criaturas viventes”, antes que como “almas viventes”, que é o real significado do hebraico nephesh. Tudo para negar que os animais são tão nephesh quanto o ser humano, e que, por isso, nephesh não é nem nunca foi um elemento eterno, imortal e imaterial presente na natureza humana.

 

O curioso é que estas mesmas traduções que adulteram o original hebraico e traduzem por “criatura” onde deveria ser “alma” relacionando-se aos animais, no mesmo contexto traduzem a mesma palavra [nephesh] por alma mesmo quando se refere a seres humanos! A manobra por trás disso tudo é muito clara: eles querem passar a falsa ideia de que nephesh (alma) é um elemento imortal e imaterial que está presente em nós mas não nos animais; por isso, traduzem essa palavra por “alma” quando se refere aos seres humanos, mas não traduzem por “alma” quando a mesma palavra é aplicada igualmente aos animais, ou senão todos ficariam sabendo que nephesh não é um elemento imortal coisa nenhuma!

 

Teófilo também faz um contraste entre nós e Deus, mostrando que Deus é imortal, enquanto o homem deixa de existir por um tempo, até voltar à existência em uma ressurreição futura:

 

“Os luzeiros contêm o exemplo e símbolo de um grande mistério, pois o sol é símbolo de Deus e a lua o é do homem. Como o sol difere muito da lua em poder e glória, assim Deus é muito diferente da humanidade; como o sol permanece sempre cheio e não diminui, assim Deus permanece sempre perfeito, repleto de poder, inteligência, sabedoria, imortalidade e de todos os bens. Em troca, a lua perece cada mês, e de certo modo, morre, e é símbolo de como é o homem; depois torna a nascer e cresce, para demonstrar a ressurreição futura (Teófilo a Autólico, Livro II, Cap.15)

 

De todos os escritos de Teófilo, o meu preferido é aquele em que ele trata mais diretamente sobre a constituição da natureza humana. A crença unânime entre os imortalistas é a de que o homem foi criado naturalmente possuindo a imortalidade, isto é, que a alma é naturalmente imortal, e isso vale para todo mundo, justos ou ímpios, crentes ou incrédulos. Por outro lado, eu não digo que a alma foi criada naturalmente imortal (o que já vimos que é uma heresia), mas nem que ela foi criada mortal, e sim que foi criada com a possibilidade de ambas, mas o homem, ao escolher o pecado, trouxe a morte a si mesmo, e, desta forma, o homem não se tornou imortal, mas mortal por natureza. É exatamente isso o que Teófilo nos explica com grande sabedoria nessas palavras:

 

“Poder-se-á dizer: ‘O homem não foi criado mortal por natureza?’ De jeito nenhum. ‘Então foi criado imortal?’ Também não dizemos isso. ‘Então não foi nada?’ Também não dizemos isso. O que afirmamos é que por natureza não foi feito nem mortal, nem imortal. Porque se, desde o princípio, o tivesse criado imortal, o teria feito deus; por outro lado, se o tivesse criado mortal, pareceria que Deus é a causa da morte. Portanto, não o fez mortal, nem imortal, mas, como dissemos antes, capaz de uma coisa e de outra. Assim, se o homem se inclinasse para a imortalidade, guardando o mandamento de Deus, receberia de Deus o galardão da imortalidade e chegaria a ser deus; mas se se voltasse para as coisas da morte, desobedecendo a Deus, seria a causa da morte para si mesmo, porque Deus fez o homem livre e senhor de seus atos. O que o homem atraiu sobre si mesmo por sua negligência e desobediência, agora Deus o presenteou com isso, através de sua benevolência e misericórdia, contanto que o homem lhe obedeça. Do mesmo modo como o homem, desobedecendo, atraiu sobre si a morte, assim também, obedecendo à vontade de Deus que quer, pode adquirir para si a vida eterna. De fato, Deus nos deu lei e mandamentos santos, e todo aquele que os cumpre pode salvar-se e, tendo alcançado a ressurreição, herdar a imortalidade” (Teófilo a Autólico, Livro II, Cap.27)

 

Teófilo acima foi simplesmente brilhante em suas colocações. Deus não criou o homem com uma alma imortal, pois, se o tivesse criado imortal, «o teria feito deus»; nem tampouco o criou mortal, senão poderia parecer que Deus é a causa da morte, ou seja, que Ele não deixou a nós outra opção a não ser a morte. A imortalidade ou mortalidade, portanto, estava dependente da escolha do homem. Dito em termos simples, a possibilidade de possuir a imortalidade não estava baseada em uma alma imortal recém-implantada, mas condicionada à obediência a Deus.

 

Mas, no Jardim, o homem preferiu comer do fruto proibido, pecou e desobedeceu ao Criador, e atraiu a morte para si mesmo. Desde então o homem passou a ser naturalmente mortal, por causa do pecado, que afetou tanto o corpo como a alma. Como disse o pastor luterano Martin Volkmann: “Adiferença, segundo certo modo de pensar, é que a parte supostamente imortal não foi afetada pelo pecado em nós, enquanto na outra forma de pensar reconhece-se a natureza radical do pecado e proclama uma nova vida através da obra salvadora de Deus”. O homem, desta forma, «se tornou a causa da morte para si mesmo, porque Deus o fez livre e senhor de seus atos».

 

O homem tornou-se naturalmente mortal pela sua própria negligência e desobediência. Mas Deus, pela Sua misericórdia, deu-nos a possibilidade de sermos imortais, se obedecermos a vontade de Deus, podendo adquirir a vida eterna. A pergunta que devemos fazer é: “O que Deus providenciou para poder nos conceder uma vida eterna (imortalidade)”? A resposta não é uma alma naturalmente imortal, mas sim a ressurreição dos mortos. A ressurreição é, por assim dizer, o “antídoto” para a imortalidade, é por meio dela que os santos podem obter a vida eterna. Foi por isso que Teófilo disse que, tendo alcançado a ressurreição, podemos herdar a imortalidade.

 

A imortalidade não é uma posse já garantida através da detenção de uma alma imortal em nossa própria natureza, mas sim algo que herdaremos, no futuro, através da ressurreição dos mortos, para aqueles que forem obedientes a Deus. Este pensamento mina toda uma noção de imortalidade natural da alma, onde o homem já foi criado possuindo naturalmente a imortalidade, onde tanto justos como ímpios viverão eternamente e são imortais, onde o pecado afeta apenas o corpo e não a alma, e onde a ressurreição não passa de uma encenação desnecessária e já estaríamos no Céu muito antes dela acontecer.

 

Essa realidade que os imortalistas não podem aceitar, que é o fato de que há uma “lacuna” (inexistência) entre a morte e a ressurreição, que a Bíblia metaforicamente chama de “sono”, era muito bem crida pelos Pais da Igreja, como Taciano, que também reiterou que, da mesma forma que o homem não existe antes de nascer, ele também não existirá após a morte, só voltando a existir através da ressurreição, quando se dará a reintegração de todos os homens por ocasião do julgamento:

 

“Por isso, também cremos que acontecerá a ressurrei­ção dos corpos depois da consumação do universo, não como dogmatizam os estóicos, segundo os quais as mes­mas coisas nascem e perecem depois de determinados períodos cíclicos, sem utilidade nenhuma, mas de uma só vez. Totalmente acabados os tempos que vivemos, dar-se-á a reintegração de todos os homens por razão do julga­mento. Então seremos julgados não por Minos ou Radamante, antes de cuja morte, como dizem os mitos, nenhuma alma era julgada, mas o juiz é o próprio Deus que nos criou. Por mais que nos considereis charlatães e palhaços, nada disso nos importa, depois que cremos nesta doutrina. Com efeito, do mesmo modo como, não existindo antes de nascer, eu ignorava quem eu era e só subsistia na substância da matéria carnal – mas uma vez nascido, eu, que antes não existia, acreditei em meu ser pelo nascimento – assim também eu, que existi e que pela morte deixarei de ser e outra vez desaparecerei da vista de todos, novamente voltarei a ser como não tendo antes existido e portanto nasci. Mesmo que o fogo destrua a minha carne, o universo recebe a matéria evaporada; se me consumo nos rios ou no mar, ou sou despedaçado pelas feras, permaneço depositado nos tesouros de um senhor rico. O pobre ateu desconhece esses depósitos, mas Deus, que é rei, quando quiser, restabelecerá em seu ser primei­ro a minha substância, que é visível apenas para ele” (Taciano, Diálogo com os Gregos, Cap.6)

 

A mesma verdade da natureza humana criada “neutra” podendo se tornar mortal ou imortal pela sua própria escolha é reforçada também por Taciano:

 

“Todavia, como a virtude do Verbo tem em si a presciência do futuro, não por fatalidade do destino, mas por livre determinação dos que escolhem, predisse os acontecimen­tos futuros, freou a maldade por suas proibições e louvou os que perseveram no bem. Aconteceu, porém, que os homens e os anjos seguiram e proclamaram Deus àquele que, por ser criatura primogênita, superava os demais em inteligência, justamente ele que se havia revelado contra a lei de Deus. Então a virtude do Verbo negou a sua convivência não só ao que se tornara cabeça desse louco orgulho, mas também a quantos o haviam seguido. E o homem, que tinha sido criado à imagem de Deus, apartando-se dele o espírito mais poderoso, tornou-se mortal e aquele que fora primogênito, por sua transgressão e insensatez, foi declarado demônio, e os que imitaram suas fantasias se transformaram no exército dos demônios que, por razão de seu livre-arbítrio, foram entregues à própria perversidade” (Taciano, Diálogo com os Gregos, Cap.7)

 

Nós não fomos cria­dos para a morte, mas morremos por nossa própria culpa. A liberdade nos deixou; nós que éramos livres, nos tor­namos escravos; fomos vendidos pelo pecado. Deus não fez nada mau; fomos nós que produzimos a maldade; nós que a produzimos, porém somos também capazes de recusá-la” (Taciano, Diálogo com os Gregos, Cap.11)

 

E a realidade de que a ressurreição não é somente do corpo, mas também da alma, também era crida por Taciano, seguindo o exemplo de todos os outros Pais da Igreja de sua época que já foram citados fazendo o mesmo tipo de menção, tais como Justino, Policarpo e Teófilo:

 

“Com efeito, nem a alma poderia por si mesma jamais se manifestar sem o corpo, e nem a carne ressuscita sem a alma” (Taciano, Diálogo com os Gregos, Cap.15)

 

A alma, segundo Taciano, não pode jamais se manifestar sem o corpo. Ele certamente deveria explicar isso para os imortalistas atuais, que creem e ensinam que passaremos longos tempos manifestados no Céu apenas em alma e sem um corpo físico ressurreto.

 

 

CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

É claro que, para quem já está cego e não quer enxergar, de nada adiantará um artigo tão claro, extenso e esclarecedor como esse, ainda que eu multiplicasse as citações até a máxima potência. Existem muitas pessoas que já estão tão profundamente cegas e enganadas pelas tradições humanas, que mesmo se lerem tudo isso e muito mais, e ainda que se deparem com a verdade escancarada na frente delas, vão sair daqui e continuar exclamando aos quatro cantos da terra que “a alma é imortal, a alma é imortal, a alma é imortal”.

 

Mais do que isso, não duvido que sejam capazes de, mesmo sabendo de toda a verdade já revelada, ainda tenham a cara de pau de dizer que a imortalidade da alma é uma doutrina ortodoxa do cristianismo, o que diante dos fatos não passa de uma verdadeira piada, é uma lenda para aqueles que no mínimo se dão ao trabalho de estudar a fundo os escritos patrísticos do primeiro ao segundo século d.C, que constituem um verdadeiro arsenal de declarações altamente destrutivas contra os pilares da crença pagã em uma alma imortal.

 

Não, os Pais da Igreja mais próximos dos apóstolos jamais creram que a alma era imortal, pois essa nunca foi uma doutrina apostólica. Com Orígenes (que amava fantasiar e metaforizar tudo) e Clemente de Alexandria, o Cristianismo passou a adotar a crença de que possuímos uma alma imortal. Curiosamente, nem mesmo estes autores sabiam direito do que estavam falando. Orígenes, que mais tarde foi declarado herege pela própria Igreja, não foi apenas aquele que começou a propor que a alma era imortal; ele também propôs a preexistência das almas ou reencarnação, ao induzir que foram os méritos de uma vida anterior que fizeram com que Jacó tivesse sido amado por Deus:

 

“Então, depois de ter examinado mais a fundo as Escrituras a respeito de Jacó e Esaù, achamos que não depende da injustiça de Deus que antes de ter nascido e de ter feito algum bem ou mal - isto é nesta vida -, tenha sido dito que o maior serviria o menor; e achamos que não é injusto que no ventre da mãe Jacó tenha suplantado seu irmão (...), se crermos que pelos méritos da vida anterior com razão ele tenha sido amado por Deus por merecer ser preferido ao irmão” (Orígenes, I Principi, Torino 1968, Livro II, 9, 7)

 

O outro, por sua vez, propôs que os apóstolos foram evangelizar no inferno:

 

“Os apóstolos, seguindo o Senhor, evangelizaram também aqueles que se encontravam no Hades; evidentemente era necessário que os melhores discípulos se tornassem imitadores do Mestre também lá” (Clemente de Alexandria, op. cit., Livro VI, 45,5: pag. 688-689)

 

Até mesmo Voltaire percebeu essa grande confusão que se tornou a Igreja depois da adoção da crença de que a alma era imortal – cada um cria em uma coisa diferente:

 

“Que importam em questões inacessíveis à razão, essas novelas criadas por nossas incertas imaginações? Que importa que os pais da Igreja dos quatro primeiros séculos acreditassem que a alma era corporal? Que importa que Tertuliano, contradizendo-se, decidisse que a alma é corporal, figurada e simples ao mesmo tempo? Teremos mil testemunhos de nossa ignorância, porém nem um só oferece vislumbre da verdade” (Voltaire, Sobre a Alma, Cap.1)

 

Então, aquilo que antes era o evangelho simples, puro e sincero, onde a alma era naturalmente mortal por causa do pecado e o homem poderia se tornar imortal na ressurreição da alma e do corpo, se tornou a maior bagunça, e dali para frente começaram a dar margens a uma série de outras grandes heresias que foram surgindo com o passar dos tempos. Dentre tais heresias, destaca-se a crença no purgatório, a intercessão dos santos (crida por muitos Pais da Igreja a partir do terceiro século d.C), a da preexistência da alma, a da reencarnação, a da comunicação ou evocação dos mortos, a das rezas aos mortos, e por ai vai.

 

O Cristianismo já estava infectado pela primeira mentira pregada pela serpente – que “certamente não morrerás” (Gn.3:4), que era e é a base para todos os demais enganos e mentiras perpetuados até os nossos dias. A partir do momento em que alguns «pensadores recentes e fanáticos» começaram a implantar a semente da imortalidade da alma no seio da Igreja antiga, uma série de outras heresias destrutivas começou a entrar na Igreja como o fruto deste processo. Graças a Deus que, possuindo tão grande arsenal de 206 provas bíblicas contra a imortalidade da alma, e mais um outro arsenal insuperável de provas históricas de que os primeiros Pais da Igreja jamais deram crédito a essa heresia, hoje podemos rejeitar essa doutrina profana e colocá-la no mesmo lugar onde ela se encontrava na época dos apóstolos: das portas para fora da Igreja Cristã e alicerçada unicamente no mais puro paganismo.

 

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

 

Por Cristo e por Seu Reino,

Lucas Banzoli.

 

 

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