Embora calvinistas e arminianos concordem quanto à depravação total e na plena necessidade da graça para a salvação, eles discordam em um ponto importante, que é no modus operandi desta graça preveniente. Calvinistas creem que esta graça que precede a salvação atua somente nos eleitos. Os não-eleitos não são alvos da graça salvífica, mas meramente de uma “graça comum”. Essa graça comum não tem qualquer propósito salvífico, mas atua meramente para impedir que os homens sejam ainda piores do que são.
Desta forma, se um incrédulo e não-eleito ajuda uma velhinha a atravessar a rua, é por causa da graça comum, que Deus distribui a todos, no concernente às coisas deste mundo. Essa graça, no entanto, é insuficiente para se chegar a Deus e ser salvo, pois a graça preveniente salvífica (que alguns calvinistas chamam de “graça especial”) atua somente e unicamente nos eleitos. Portanto, os calvinistas creem em uma graça especial limitada, que não oferece oportunidade de salvação para todos, e onde a possibilidade de salvação se limita aos eleitos. Os outros não tem sequer uma chance.
Os arminianos, ao contrário, creem na graça comum, mas também creem em uma graça preveniente universal. Isso significa que Deus dá oportunidade de salvação a todos, e que a razão pela qual muitas pessoas não são salvas não é porque Deus não as escolheu ou porque ele não quis assim, mas por culpa das próprias pessoas que rejeitaram o convite divino. Deus estende seu convite a todos e dá real oportunidade de salvação a todo ser humano, por meio de uma graça universal, ilimitada e livre para todos.
E isso entra no outro ponto que difere calvinistas e arminianos: se esta graça é oferecida a todos, mas nem todos são salvos, é porque nem todos a recebem. Em outras palavras, essa graça é resistível, no conceito arminiano. Os calvinistas, ao contrário, creem em uma graça irresistível, porque ela atua somente nos eleitos e estes não podem não ser salvos, não podem resistir à graça. Não deveríamos ver exemplos na Bíblia de pessoas resistindo a uma graça especial, segundo os calvinistas. Iremos começar analisando a extensão da graça, se ela é mesmo limitada ou se é universal.
• A Universalidade da Graça
Uma graça limitada era exatamente aquilo que mais irritava Wesley. Ele não se conformava que um Deus de amor e misericórdia como a Bíblia o descreve fosse alguém que limitasse a sua graça e que desse oportunidade de salvação somente a uma pequena parcela da população mundial, deixando os outros com a única possibilidade do inferno. Sua frase: “a graça de Deus é livre em todos e livre para todos” foi uma das mais marcantes. Um portal metodista descreve este sentimento de Wesley, dizendo:
“Mas terá Deus distribuido a sua graça com todos os seres humanos? É aqui que Wesley se torna mais enfático. Nem mesmo as doutrinas católico-romanas provocaram-lhe tão grande ira quanto à propagada ideia ao seu tempo de que Deus havia escolhido uns quantos para a salvação, deixando a grande maioria perecer nos seus próprios pecados. A chamada doutrina da reprovação, a de que Deus não apenas não se importa com milhões, mas deliberadamente os predestinou à perdição, enchia Wesley de horror, que a considerava uma terrível blasfêmia contra Deus, pois o considerava injusto, cruel e mentiroso”[1]
O fato é que em toda a Bíblia vemos que Wesley tinha razão, e que a universalidade da graça é fortemente proclamada. Ela nunca diz que a graça de Deus é limitada a alguns poucos, mas há abundantes citações de que ela é ilimitada e se revela a todos os homens, até mesmo àqueles que a rejeitam.
Paulo, por exemplo, nos disse que “a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens” (Tt.2:11). Aqui ele obviamente não está falando de uma graça comum, mas de uma graça salvífica, que Paulo identifica como sendo uma “graça salvadora”. Ele não diz que ela se manifestou apenas para alguns poucos (os eleitos), mas a todos os homens.
Parece impossível ser mais claro que isso, mas João também repete com Paulo que “estava chegando ao mundo a verdadeira luz, que ilumina todos os homens” (Jo.1:9). João também não estava falando meramente de uma graça comum sem relação com a salvação, pois ele diz no contexto que essa graça tinha o fim “de que por meio dele todos os homens cressem” (Jo.1:7). Portanto, estamos falando de uma graça com finalidade salvífica, que é oferecida a todos os homens, mas que nem todos a recebem. Foi por isso que João disse:
“Aquele que é a Palavra estava no mundo, e o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não o reconheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam” (João 1:10,11)
Assim, vemos que:
• Deus oferece sua graça a todos os homens (v.9).
• Essa graça era uma graça salvífica, pois João diz que tinha por finalidade que todos os homens cressem (v.7).
• Porém, nem todos os homens creem. A razão para isso é explicada nos versos seguintes: porque nem todos reconhecem e recebem a Cristo – muitos rejeitam essa graça que lhes é oferecida (vs.10-11).
Sobre este texto de João, Vance observa:
“A negação tripla enfatiza o fato de que a fonte do novo nascimento é ‘de Deus’ e não do homem. E por que Deus dá a alguém o novo nascimento? Deus dá o novo nascimento a ‘tanto quantos o receberam’. O novo nascimento é obra de Deus, mas receber a Cristo é a parte do homem”[2]
A universalidade desta graça salvadora é a única coisa que explica Deus ter dito em Isaías:
“Voltem-se para mim e sejam salvos, todos vocês, confins da terra; pois eu sou Deus, e não há nenhum outro” (Isaías 45:22)
Como que todos, desde os “confins da terra”, poderiam se voltar para Deus? Logicamente, somente porque Deus derrama uma graça salvadora sobre todos os homens, desde os confins da terra, dando oportunidade real a todos. Foi por isso que Jesus disse:
“Vinde a mim, todos os que estai cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei” (Mateus 11:28)
Olson observa que “Cristo é o novo Adão (Rm 5) que é o novo líder da raça; ele não veio unicamente para salvar alguns, mas para fornecer um recomeço para todos. Uma medida de graça preveniente se estende por meio de Cristo a toda pessoa que nasce (Jo 1)”[3]. Todo este conceito é diametralmente oposto ao que Calvino ensinava, onde os não-eleitos são privados até mesmo da capacidade de ver, obedecer ou seguir a Cristo:
“Com razão se diz que ele cega, endurece, inclina àqueles a quem priva da capacidade de ver, de obedecer, de seguir retamente”[4]
Enquanto na Bíblia vemos Deus oferecendo uma graça salvífica a todos os homens e que a razão pela qual nem todos não salvos é porque nem todos aceitam esta graça, na teologia calvinista Deus não oferece a graça especial a todos, nem uma oportunidade a todos, mas decide que uma enorme parcela da população mundial seja privada de qualquer chance de obedecer a Deus. Assim, a razão pela qual um arminiano crê que um não-salvo é condenado é porque ele resistiu a Deus, enquanto o calvinista crê que a causa primeira foi porque Deus o privou, e o deixou sem chances de fazer outra coisa a não ser desobedecê-lo.
No calvinismo, todos morrem em Adão, mas apenas alguns têm oportunidade de salvação em Cristo. Deus colocou todos sob a desobediência para exercer misericórdia apenas para com alguns. Esse Deus estende suas mãos apenas para alguns – que não podem recusar o convite – e ignora a grande maioria, sem sequer estender suas mãos para eles, pois já decretou que eles devem ir para o inferno. Seria difícil compreender versículos como estes:
“Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça; Para que, assim como o pecado reinou na morte, também a graça reinasse pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo nosso Senhor” (Romanos 5:20,21)
“Pois Deus colocou todos sob a desobediência, para exercer misericórdia para com todos” (Romanos 11:32)
O pecado abundou sobre todos os seres humanos, mas a graça superabundou apenas sobre alguns? Se o pecado atuou sobre todos e Paulo chama de abundante, como a graça salvadora é oferecida apenas a alguns, se ela é mais que abundante? E Deus teria colocado todos sob a desobediência para exercer misericórdia apenas para com alguns? A lógica e o bom senso nos dizem que versos como estes exigem que a graça salvadora de Deus tenha uma extensão tão grande quanto a extensão que o pecado teve – e isso abrange todo ser humano.
• A graça é resistível e precisa ser aceita
Antes de mostrarmos o que a Bíblia diz, é necessário mostrarmos o que Calvino disse, para estabelecermos o contraste. Como ele ensinava que a graça é irresistível, ele era obrigado a crer que a causa primeira pela qual alguém está no pecado é porque Deus não entendeu sua graça a essa pessoa, e não porque essa pessoa rejeitou a graça oferecida a ela. Ele disse que “a fonte de sua cegueira é o fato de Deus não se dignar manifestar-lhes seu braço”[5]. Contra aqueles que criam que o homem pode resistir à graça, ele disse:
“Esse erro nasceu daí, a saber, que os homens pensavam estar em nosso arbítrio rejeitar ou aceitar a graça de Deus oferecida, refugada esta opinião, também aquele por si só se esboroa”[6]
Sendo assim, a razão pela qual o pecador peca é porque Deus o abandonou:
“Profeta diz ser redimido pela mão de um mais forte [Jr 31.11], significando com isso de quão apertados grilhões está amarrado o pecador por todo o tempo em que, abandonado pelo Senhor, age debaixo do jugo do Diabo”[7]
Por isso, a razão pela qual uns perseveram e outros pecam é porque Deus estende sua graça a uns e não a outros:
“Se se procura a causa da diferença, por que uns perseveram constantes, outros por instabilidade desfalecem, não nos é mostrada nenhuma outra causa senão que àqueles, firmados por seu poder, o Senhor os sustenta para que não pereçam; a estes não lhes ministra o mesmo poder, para que sejam exemplos de inconstância”[8]
Se o pecador peca, ele peca em virtude da ausência da graça, que Deus não lhe quis dar:
“Portanto, por que ao Senhor não importunam para que assim não labore em vão exigindo dos homens aquilo que só ele pode dar e castigando aquilo que se comete em virtude da ausência de sua graça?”[9]
Quanto aos eleitos, ele diz que eles não podem resistir à graça de Deus:
“E Deus move a vontade, não da maneira como por muitos séculos se ensinou e se creu – que seja de nossa escolha em seguida obedecer ou resistir à operação de Deus –, ao contrário, dispondo-a eficazmente. Logo, é necessário que se repudie tal afirmação tantas vezes repetida por Crisóstomo: ‘Aquele a quem Deus atrai, atrai querendo’, com que insinua que o Senhor apenas espera, de mão estendida, se porventura nos agrade sermos ajudados por seu auxílio”[10]
Vemos que Calvino rejeitava a tese de que “o Senhor espera de mão estendida”, em um gesto gracioso de oferta de uma graça livre, que pode ser aceita ou recusada. Deus, no calvinismo, não é como um cavalheiro que oferece a graça a todos com as mãos estendidas para o pobre pecador, mas é como um déspota que ignora a maioria dos pecadores e que sequer lhes estende as mãos, mas arrebata para si alguns “eleitos”, mesmo contra a vontade deles[11].
A Bíblia, diferente de Calvino, apresenta um arsenal incontestável de citações onde um Deus amoroso estende as suas mãos a um povo que o rejeita. O apóstolo Paulo diz que Deus “todo o dia estendeu as suas mãos a um povo rebelde e desobediente” (Rm.10:21). Ele fazia uma citação ao texto de Isaías, onde Deus diz:
“O tempo todo estendi as mãos a um povo obstinado, que anda por um caminho que não é bom, seguindo as suas inclinações” (Isaías 65:2)
Então, vemos que, biblicamente, Deus estende as suas mãos a pessoas obstinadas, rebeldes, desobedientes e que o rejeitam. Ele não se digna a estender suas mãos apenas para os eleitos, como cria Calvino, mas a estende a todos, inclusive àqueles que o rejeitam. Seria simplesmente ridículo se esse Deus que estende suas mãos tentando salvar um pecador desobediente é o mesmo Deus que determinou que este pecador fosse desobediente e que rejeitasse a Sua oferta.
Se fosse assim, tudo não passaria de uma peça teatral, onde Deus finge querer salvar o pecador, quando, na verdade, ele já predestinou este pecador ao inferno. A sinceridade e honestidade neste gesto de estender as mãos seria tão grande quanto o beijo de Judas. Mas o que a Bíblia realmente ensina é que Deus estendeu seu braço para resgatá-los, porque ele buscava a salvação daquelas pessoas, que o rejeitaram:
“Quando eu vim, por que não encontrei ninguém? Quando eu chamei, por que ninguém respondeu? Será que meu braço era curto demais para resgatá-los? Será que me falta a força para redimi-los? Com uma simples repreensão eu seco o mar, transformo rios em deserto; seus peixes apodrecem por falta de água e morrem de sede” (Isaías 50:2)
O que Deus está dizendo neste texto de Isaías é que a razão pela qual eles não foram resgatados não foi por uma omissão divina ou retenção da graça, pois ele buscou, chamou e estendeu suas mãos ao pecador, com a finalidade de que eles fossem redimidos. Seu braço não era curto, seu chamado não era falso, sua força não era limitada. A razão da perdição daquelas pessoas é em função da própria desobediência delas, em recusar a graça salvadora que lhes estava sendo ofertada.
Não era porque Deus não quis, e muito menos porque ele não chamou ou não se dignou a estender suas mãos. Deus fez toda a sua parte para a salvação deles, mas eles não fizeram a parte deles, que meramente se resumia em aceitar essa graça oferecida. As parábolas de Jesus ilustram muito bem isso. Sempre Deus chamava a todos, mas alguns eram desobedientes ou recusavam a oferta. Em uma de suas parábolas, ele disse:
“Então disse a seus servos: ‘O banquete de casamento está pronto, mas os meus convidados não eram dignos. Vão às esquinas e convidem para o banquete todos os que vocês encontrarem’. Então os servos saíram para as ruas e reuniram todas as pessoas que puderam encontrar, gente boa e gente má, e a sala do banquete de casamento ficou cheia de convidados. Mas quando o rei entrou para ver os convidados, notou ali um homem que não estava usando veste nupcial. E lhe perguntou: ‘Amigo, como você entrou aqui sem veste nupcial? ’ O homem emudeceu. Então o rei disse aos que serviam: ‘Amarrem-lhe as mãos e os pés, e lancem-no para fora, nas trevas; ali haverá choro e ranger de dentes’” (Mateus 22:8-13)
Primeiro: todos foram convidados. Segundo: a sala do banquete ficou cheia de convidados. Terceiro: nem todos os convidados obedeceram, pois alguns recusaram a veste nupcial. Deus convida a todos; alguns aceitam e outros rejeitam. Em outra parábola, ele contou:
“O Reino dos céus é como um rei que preparou um banquete de casamento para seu filho. Enviou seus servos aos que tinham sido convidados para o banquete, dizendo-lhes que viessem; mas eles não quiseram vir. De novo enviou outros servos e disse: ‘Digam aos que foram convidados que preparei meu banquete: meus bois e meus novilhos gordos foram abatidos, e tudo está preparado. Venham para o banquete de casamento!’ Mas eles não lhes deram atenção e saíram, um para o seu campo, outro para os seus negócios” (Mateus 22:2-5)
Mais uma vez, todos foram convidados para o banquete. Porém, nem todos quiseram ir. Muitos não deram atenção e saíram, amando mais suas próprias vidas do que o Reino de Deus. Novamente, Jesus ensina que Deus chama a todos em sua oferta misericordiosa de graça, mas nem todos aceitam este convite, porque ele não é irresistível. É por isso que o autor de Hebreus disse:
“Cuidado! Não rejeitem aquele que fala. Se os que se recusaram a ouvir aquele que os advertia na terra não escaparam, quanto mais nós, se nos desviarmos daquele que nos adverte dos céus?” (Hebreus 12:25)
Isso não faz sentido se a graça é irresistível e não pode ser rejeitada. Se a pessoa é eleita, ela não pode resistir à graça. Se ela não é eleita, então a graça salvífica não é oferecida a ela, e ela não pode rejeitar a algo que não lhe foi oferecido, da mesma forma que ninguém recusa um presente se ninguém lhe ofereceu um. De todos os modos, dizer para “não rejeitar” a graça seria inócuo e sem sentido, se o modus operandi desta graça é irresistível.
Em Apocalipse, João diz:
“E blasfemavam contra o Deus do céu, por causa das suas dores e das suas feridas; contudo, recusaram-se a arrepender-se das obras que haviam praticado” (Apocalipse 16:11)
Neste mesmo livro vemos a ilustração de Deus batendo à porta, esperando que o pecador a abra, para que ele possa cear com ele. Os calvinistas rejeitam essa ilustração e para isso argumentam que Deus não estava falando com os incrédulos, mas com a Igreja, porque essa carta foi escrita a uma igreja local, a de Laodiceia.
Ignoram, no entanto, que este texto não foi escrito para a Igreja como o Corpo místico de Cristo, mas para uma igreja nominal, uma congregação, que pode reunir cristãos verdadeiros e cristãos meramente nominais, mas que não vivem a sua fé. Que nem todos das igrejas locais eram obedientes, isso fica claro na leitura das cartas às sete igrejas e nas epístolas apostólicas.
Um crente da Igreja de Corinto, por exemplo, mantinha relações sexuais com sua madrasta, e Paulo disse para expulsá-lo da comunhão (1Co.5:1,2). Ele era um crente nominal, que frequentava uma comunidade cristã local, mas não era um verdadeiro cristão. Era um ímpio dentro de uma igreja. O mesmo ocorre com a igreja local de Laodiceia como um todo. Vejamos como Deus a descreve:
“Ao anjo da igreja em Laodiceia escreva: Estas são as palavras do Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o soberano da criação de Deus. Conheço as suas obras, sei que você não é frio nem quente. Melhor seria que você fosse frio ou quente! Assim, porque você é morno, nem frio nem quente, estou a ponto de vomitá-lo da minha boca. Você diz: Estou rico, adquiri riquezas e não preciso de nada. Não reconhece, porém, que é miserável, digno de compaixão, pobre, cego e que está nu. Dou-lhe este aconselho: Compre de mim ouro refinado no fogo e você se tornará rico; compre roupas brancas e vista-se para cobrir a sua vergonhosa nudez; e compre colírio para ungir os seus olhos e poder enxergar” (Apocalipse 3:14-18)
Vemos que a igreja de Laodiceia era apenas uma igreja nominal, composta por cristãos de aparência, que não viviam a fé que professavam. Deus iria vomitá-los da sua boca, disse que eram espiritualmente miseráveis, dignos de compaixão, pobres, cegos e nus. Eles eram cegos espirituais, pois ainda precisavam comprar colírio para ungir seus olhos. Os cegos espirituais são uma figura dos descrentes que estão nas trevas, e não dos crentes que estão na luz. Portanto, essa igreja local de Laodiceia era tão corrompida quanto o mundo, e é a eles que Deus diz, logo em seguida, o seguinte:
“Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a Minha voz, e abrir a porta, entrarei na sua casa, e cearei com ele, e Ele comigo” (Apocalipse 3:20)
Desta forma, analisando dentro do contexto, vemos que essa declaração se aplica aos ainda não-salvos da mesma forma que se aplicou aos falsos crentes não-regenerados da igreja de Laodiceia. Deus bate à porta, como um cavalheiro esperando ser recebido. Ele não arromba a porta nem violenta a vontade do pecador para que ele abra. Ele não atrai com uma força irresistível. Ele oferece a sua graça e espera pacientemente que o pecador a receba em sua vida, para que Cristo entre em seu coração e faça toda a transformação necessária.
Essa função humana de abrir a porta, que decorre do livre-arbítrio de poder aceitar ou rejeitar algo, também foi destacada pelo apóstolo Paulo ao escrever aos efésios. Ele disse:
“Não vos embriagueis com vinho, que é uma fonte de devassidão, mas enchei-vos do Espírito” (Efésios 5:18)
O ato de “encher” é atribuído às próprias pessoas. Embora seja Deus que possibilite este ato e capacite as pessoas a isto, cabe às próprias pessoas o colocarem em ação, ao não resistirem à graça divina. A NVI traduz por “deixem-se encher pelo Espírito” (v.18), mostrando que o enchimento não é um processo unilateral da parte de Deus, mas algo que implica em assentimento humano. Da mesma forma que ele não abre a porta por si mesmo, mas espera que nós a abramos para recebê-lo (Ap.3:20), ele não nos enche do Espírito Santo sem nosso consentimento, mas somos nós que nos “deixamos encher” do Espírito.
A possibilidade de recusar essa oferta é clara em toda a Bíblia. Ela diz que Janes e Jambres “resistiram à verdade” (2Tm.3:8), que “nem todos os israelitas aceitaram as boas novas” (Rm.10:16), que alguns “suprimem a verdade pela injustiça” (Rm.1:18), que os judeus de Antioquia “rejeitaram e não se julgaram dignos da vida eterna” (At.13:46), que “os seus não o receberam” (Jo.1:11), mas “a todos quantos o receberam deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus” (Jo.1:12).
É impossível negar a realidade de que é possível resistir ou não resistir; suprimir ou não suprimir; receber ou não receber; aceitar ou rejeitar. Deus nunca atua mediante uma força irresistível, mas permite ser resistido. A graça não é irresistível, mas precisa ser aceita e recebida por parte do homem. Até Estêvão já sabia que o homem pode resistir ao Espírito Santo:
“Povo rebelde, obstinado de coração e de ouvidos! Vocês são iguais aos seus antepassados: sempre resistem ao Espírito Santo!” (Atos 7:51)
Ninguém “resiste” a algo a não ser que este algo queira outra coisa. Se o Espírito Santo não desejava a salvação daqueles que o resistiram, supostamente porque Deus já os havia predestinado à perdição, então por que ele estava tentando algo na vida deles? Se ele não estava tentando nada, não poderia ser “resistido”. Se ele estava tentando algo, mas não conseguiu e foi resistido, é porque a atuação de Deus não é monergística e muito menos irresistível.
Deus faz tudo para a salvação de cada indivíduo, mas “por causa da sua teimosia e do seu coração obstinado, você está acumulando ira contra si mesmo, para o dia da ira de Deus, quando se revelará o seu justo julgamento” (Rm.2:5). Mesmo querendo salvá-los, alguns são teimosos e tem um coração obstinado, que pode resistir à operação do Espírito Santo. Deus lhes oferece a salvação, mas não crê no lugar deles, pois isso implicaria em ferir o livre-arbítrio, que vimos no capítulo 2.
Isso explica o porquê que a Bíblia sempre coloca o arrependimento como sendo uma função do homem:
“Daí em diante Jesus começou a pregar: ‘Arrependam-se, pois o Reino dos céus está próximo’” (Mateus 4:17)
“Ele dizia: ‘Arrependam-se, porque o Reino dos céus está próximo’” (Mateus 3:2)
Deus não crê pela própria pessoa, nem se arrepende por ela. Cabe ao próprio indivíduo se arrepender. Este arrependimento não é feito por Deus, e sim possibilitado por Ele. É por isso que Paulo disse:
“Ouvindo isso, não apresentaram mais objeções e louvaram a Deus, dizendo: Então, Deus concedeu arrependimento para a vida até mesmo aos gentios!” (Atos 11:18)
Deus nos concede a possibilidade do arrependimento para a vida eterna e nos dá tempo para que nos arrependamos, mas, ainda assim, as pessoas podem resistir a Deus e recusarem se arrepender, como ele disse:
“Dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua imoralidade sexual, mas ela não quer se arrepender” (Apocalipse 2:21)
Isso também está no contexto das cartas às sete igrejas, e nos mostra que é possível alguém frequentar uma igreja local estando com o coração longe de Deus, distante do arrependimento para a vida eterna. Deus espera que essas pessoas se arrependam, possibilita o arrependimento através da graça preveniente, dá-lhes tempo para o arrependimento, mas mesmo com todo este favor divino é possível que alguém resista à operação do Espírito Santo e não queira se arrepender.
Foi isso o que aconteceu com alguns daquela igreja de Tiatira, e é isso o que ocorre com muitos nos dias de hoje. Deus não se manifesta apenas para alguns nem derrama Sua graça somente sobre poucos. Ele dá oportunidade de arrependimento para a salvação a todos, mas nem todos aceitam se arrependerem. A condenação deles não é em função de uma negligência arbitrária divina em reter a graça que lhes poderia salvar, mas é pela resistência das próprias pessoas.
O novo nascimento é uma dádiva de Deus, mas é preciso que uma pessoa a receba. Jesus disse que “uma pessoa só pode receber o que lhe é dado dos céus” (Jo.3:27). Comentando este texto, Geisler diz que “isso implica um ato livre da vontade, que pode tanto aceitar quanto rejeitar a oferta de Deus”[12]. A realidade da possibilidade de alguém não recebera Cristo mesmo depois de ter sido chamado é muito clara à luz do convite de Jesus ao jovem rico, em uma famosa passagem bíblica. Ele disse:
“Jesus olhou para ele e o amou. ‘Falta-lhe uma coisa’, disse ele. ‘Vá, venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu. Depois, venha e siga-me’. Diante disso ele ficou abatido e afastou-se triste, porque tinha muitas riquezas. Jesus olhou ao redor e disse aos seus discípulos: ‘Como é difícil aos ricos entrar no Reino de Deus!’” (Marcos 10:21-23)
É impossível negar o óbvio deste texto: que Jesus chamou o rico a segui-lo. O “siga-me” foi expressamente declarado. Porém, aquele jovem recusou este chamado, e se afastou, porque seu coração estava conquistado pelas riquezas. Jesus não estava chamando-o hipocritamente, como se já tivesse decidido o contrário na vida dele. O chamado não era insincero; era tão sincero que Cristo realmente queria que aquele jovem o seguisse. Cristo “o amou” e realmente desejou a salvação dele, caso contrário não o teria chamado. Mesmo assim, aquele jovem recusou o chamado.
É difícil ler este relato sob a ótica calvinista, pois teríamos que crer que Jesus não o chamou sinceramente (pois já havia determinado que ele não o seguisse). Seria um chamado insincero e falso. Mas se Cristo realmente o chamou e se este chamado foi sincero, então temos que admitir a possibilidade da rejeição. A graça, como se manifestou neste caso, não é irresistível. Se fosse, aquele jovem nunca poderia ter resistido e se afastado de Jesus. Ele seria atraído com uma força irresistível e “eficaz”, como os calvinistas gostam de dizer. Mas a graça não violou o livre-arbítrio, nem violentou a vontade do homem.
Casos semelhantes ocorrem naquelas duas passagens que já vimos neste livro. A primeira é quando Lucas diz que “os fariseus e os peritos na lei rejeitaram o propósito de Deus para eles, não sendo batizados por João” (Lc.7:30). Deus tinha um propósito para eles, mas eles rejeitaram este propósito. Ou o propósito de Deus é falso, ou a rejeição humana é uma possibilidade real. A outra passagem é aquela em que Cristo fala sobre Jerusalém:
“Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes eu quis reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, mas vós não o quisestes!” (Mateus 23:37)
Deus queria uma coisa, mas os israelitas quiseram outra. Como consequencia, a casa deles ficou deserta (v.38) e eles foram massacrados pelos romanos. Se a vontade de Deus fosse a única coisa que importasse, seria óbvio que isso não aconteceria, pois Jesus disse que queria o contrário. Se o homem não pudesse resistir a Deus, aqueles judeus teriam cumprido o querer de Cristo e teriam sido ajuntados por ele. Porém, isso não aconteceu. É como disse Olson:
“Se a graça irresistível fosse verdadeira, claro, Jesus poderia simplesmente ter atraído eficazmente o povo de Jerusalém para Si. Por que ele assim não o fez se estava tão pesaroso acerca de sua rejeição? E por que ele estaria triste acerca da rejeição se ela, assim como tudo, foi preordenado por Deus?”[13]
Lemke também observa:
“Se Jesus acreditasse na graça irresistível, tanto na chamada externa quanto na interna, seu lamento aparente sobre Jerusalém teria sido apenas um ato insincero, um show de dissimulação pelo fato dele saber que Deus não iria e que não daria a tais pessoas perdidas as condições necessárias para a salvação das mesmas”[14]
O fato de Jesus ter chorado sobre Jerusalém naquela ocasião (Lc.19:41) também é algo que fica sem explicação no prisma calvinista. Olson também observa isso, dizendo:
“Imagine que um pai possui uma poção do amor que faria com que todos os seus filhos o amassem e que jamais se rebelassem contra ele. Ele dá a poção a alguns de seus filhos, mas não a dá a outros e então chora pelo fato de que alguns de seus filhos o rejeitam e não o amam. Quem levaria esse pai a sério? Ou, se o levássemos a sério, quem não pensaria que ele é insincero ou um tanto quanto louco?”[15]
A única passagem bíblica que os calvinistas frequentemente recorrem na tentativa de provar a graça irresistível na Bíblia é a de João 6:44, que diz:
“Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair; e eu o ressuscitarei no último dia” (João 6:44)
Sproul faz amplo uso deste texto na tentativa de provar que o homem é atraído por Deus irresistivelmente. Porém, nada neste texto nos diz que essa atração é irresistível. Embora em outras passagens bíblicas o termo helkuo tenha esta conotação, ele também pode significar simplesmente trazer ou atrair, ao invés de compelir. É assim que entendemos um texto paralelo em João 12:32, onde a mesma palavra é utilizada:
“Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei [helkuo] todos a mim” (João 12:32)
Jesus não disse que atrairia “alguns”, mas “todos”. Se helkuo significa uma força irresistível, então este verso ensina o universalismo, que é a crença falsa de que todos serão salvos. Sabemos que isto é errado porque também sabemos que helkuo nem sempre implica em compelir algo. Como Olson observa, “a palavra pode significar simplesmente trazer ou atrair em vez de compelir ou arrastar. A interpretação arminiana destes versículos em João 6 e 12 é sensata: que ninguém pode vir a Jesus Cristo a menos que a pessoa seja atraída pela graça preveniente de Deus que chama e capacita, mas que não compele”[16].
O Antigo Testamento também está repleto de citações onde o homem resiste a Deus. Em Ezequiel, por exemplo, Deus diz:
“Ora, a sua impureza é a lascívia. Como eu desejei purificá-la mas você não quis ser purificada de sua impureza, você não voltará a estar limpa, enquanto não se abrandar a minha ira contra você” (Ezequiel 24:13)
Deus quis purificar Israel, mas Israel não foi purificada, e a razão para isso é porque Israel não quis. É mais uma vez nítido que uma pessoa, e até mesmo uma nação como um todo, pode resistir aos propósitos do Senhor, porque o que Deus deseja não é algo irresistível. Se Deus tivesse determinado que Israel ficaria impura e tivesse negligenciado a graça necessária para a sua purificação, estaria sendo no mínimo cínico ao dizer que deseja a purificação de Israel, quando tirou dela toda e qualquer possibilidade de purificação.
Por outro lado, se este desejo é sincero e verdadeiro, e Deus realmente quis purificar Israel, que não foi purificada porque ela não quis, então logicamente é possível resistir a Deus, no sentido de recusar uma oferta livre de graça, que pode purificar e regenerar o homem perdido. Isso se vê mais claramente em Jeremias, que é repleto de citações como essas. No capítulo 7, por exemplo, Deus diz:
“Porque vos chamei e não respondestes, farei a esta casa como fiz a Silo” (Jeremias 7:13,14)
Deus os chamou, mas o homem resistiu a este chamado, não respondendo. Seria completamente irracional se Deus tivesse chamado alguém que ele já determinou que não poderia ouvir. Faria tanto sentido quanto falar com a parede. Se Deus chamou, no mínimo era possível que o homem respondesse. Se o homem não respondeu, no mínimo era possível resistir ao chamado divino. Alguns versos adiante, Deus diz:
“Porém não escutaram, nem inclinaram os seus ouvidos, mas andaram para trás em vez de irem para diante” (Jeremias 7:24)
“Esta nação não deu ouvidos à voz do Senhor seu Deus, nem aceitou sua correção, por isso foi rejeitada pelo Senhor” (Jeremias 7:28,29)
Como vemos, a rejeição da parte de Deus só vem depois da rejeição da parte do homem. Deus possibilita a resposta livre do homem através da graça preveniente, o homem recusa esta graça, então Deus o rejeita. É exatamente o contrário do calvinismo, onde primeiro é Deus que rejeita o indivíduo e o predestina à perdição, depois o cega e o endurece para que ele rejeite a Deus, e finge querer algo diferente para ele em relação ao que ele determinou.
O esquema abaixo demonstra bem isso, na ótica calvinista:
Como vemos, o chamado no calvinismo é algo ilógico e insincero. Nenhuma razão há em chamar alguém que ele já predestinou à perdição, que já endureceu e que por causa deste endurecimento não há a mínima chance de aceitar o chamado. Seria a mesma coisa de eu amarrar as mãos e os pés de um indivíduo, depois o prender dentro de um baú e o chamar para fora, sem que ele tenha a mínima chance de sair dali. Este chamado seria, na melhor das hipóteses, uma zombaria. Se Deus determinou um indivíduo à perdição e este não tem sequer uma oportunidade de reverter isso, então este chamado, além de inútil, é um deboche.
Agora vejamos isso no prisma arminiano:
No prisma arminiano, tudo faz sentido. Pela graça preveniente, Deus dá uma oportunidade a todos, mas nem todos aceitam a graça que lhes é oferecida. Estes que resistem à graça vão endurecendo seus corações, até o ponto em que são definitivamente rejeitados por Deus, que os esperou com longanimidade e paciência por muito tempo, e por fim eles são condenados. Ninguém é condenado sem ter uma oportunidade, e ninguém é rejeitado por Deus sem antes ter rejeitado a Deus. Este quadro fica ainda mais nítido quando vemos Deus dizendo:
“Porque endurecestes vosso coração, e não quisestes obedecer ao Senhor, todos estes males vos sobrevieram” (Jeremias 19:15)
E também:
“Voltaram as costas para mim e não o rosto; embora eu os tenha ensinado vez após vez, não quiseram ouvir-me nem aceitaram a correção. Profanaram o templo que leva o meu nome, colocando nele as imagens de seus ídolos” (Jeremias 32:33,34)
Deus persiste, vez após vez, desejando e possibilitando o arrependimento deles para a vida eterna, mas eles, por sua própria rebeldia e desobediência, recusam-se a aceitar a graça e fecham seus próprios ouvidos à correção de Deus. Essa ilustração é muito vívida ao lermos o texto de Oseias, onde Deus diz:
“Quando Israel era menino, eu o amei, e do Egito chamei o meu filho. Mas, quanto mais eu o chamava, mais eles se afastavam de mim. Eles ofereceram sacrifícios aos baalins e queimaram incenso os ídolos esculpidos. Mas fui eu quem ensinou Efraim a andar, tomando-o nos braços; mas eles não perceberam que fui eu quem os curou. Eu os conduzi com laços de bondade humana e de amor; tirei do seu pescoço o jugo e me inclinei para alimentá-los. ‘Acaso não voltarão ao Egito e a Assíria não os dominará porque eles se recusam a arrepender-se?’” (Oséias 11:1-5)
O tempo todo Deus os amou. Ele jamais os abandonou. Ele os chamava dia após dia, ainda que os israelitas se afastassem cada vez mais. Ele os ensinou a andar, os tomou em seus braços, fez tudo o que um pai bondoso e misericordioso faz para com um filho amado. Mesmo assim, os israelitas seriam condenados ao jugo do império assírio.
A razão disso não é porque Deus de repente se lembrou que os havia predestinado à perdição antes da fundação do mundo, mas porque os israelitas recusaram se arrepender. Deus queria e buscou o arrependimento deles, mas não violou o livre-arbítrio deles. A graça ainda era resistível, de modo que eles puderam recusar se arrepender, e tiveram o fim que tiveram. A mesma coisa lemos em Provérbios, onde Deus diz:
“Se acatarem a minha repreensão, eu lhes darei um espírito de sabedoria e lhes revelarei os meus pensamentos” (Provérbios 1:23)
“Se acatarem” denota condicionalidade. Não era algo que Deus iria colocar irresistivelmente sobre quem ele quisesse, e rejeitar a quem ele quisesse. Era algo que dependia de aceitação humana – se eles acatarem. Em seguida, Deus diz:
“Vocês, porém, rejeitaram o meu convite; ninguém se importou quando estendi minha mão!” (Provérbios 1:24)
Deus estende as mãos e convida o pecador a aceitar a graça, mas eles rejeitaram o convite divino. Isso mais uma vez prova que a graça não é irresistível, e que Deus estende as mãos para pessoas que o rejeitam, contrariando o que Calvino disse. O texto prossegue dizendo:
“Visto que desprezaram totalmente o meu conselho e não quiseram aceitar a minha repreensão, eu, de minha parte, vou rir-me da sua desgraça; zombarei quando o que temem se abater sobre vocês, quando aquilo que temem abater-se sobre vocês como uma tempestade, quando a desgraça os atingir como um vendaval, quando a angústia e a dor os dominarem. Então vocês me chamarão, mas não responderei; procurarão por mim, mas não me encontrarão. Visto que desprezaram o conhecimento e recusaram o temor do Senhor” (Provérbios 1:25-29)
O texto deixa claro as “duas partes”, a parte do homem e a parte de Deus. Da parte do homem, que não quis aceitar a repreensão de Deus e que recusou o temor do Senhor; e da parte de Deus, que por causa da rejeição do homem iria rejeitá-los também. Mais uma vez vemos que a rejeição da parte de Deus só vem depois da rejeição da parte do homem, e que Deus estende seu convite de graça para todo ser humano, inclusive àqueles que o rejeitam. E o texto conclui dizendo:
“Não quiseram aceitar o meu conselho e fizeram pouco caso da minha advertência” (Provérbios 1:30)
A analogia presente neste e em outros textos que já vimos é a de Deus como um Pai que estende por misericórdia as suas mãos a um homem pecador que se encontra no fundo de um poço. Todos os homens se encontram no fundo do poço, porque em Adão todos morreram. Mas, da mesma forma que todos morreram em Adão, todos tem uma oportunidade de salvação por meio de Cristo, que estende sua mão a todos, buscando salvá-los. Se alguém aceita a Jesus, este é salvo por ele. Se, porém, alguém se recusa a ser salvo, é condenado por sua própria rebeldia e desobediência.
A dificuldade que os calvinistas tem em interpretarem textos como estes se vê patente na interpretação deles do texto de 2ª Crônicas 24:19, que diz:
“Contudo Jeová lhes enviou profetas para os reconduzir a si; estes protestaram contra eles, que não lhes quiseram, porém, dar ouvidos” (2ª Crônicas 24:19)
Em uma tentativa de reinterpretar este texto sob uma ótica calvinista distorcida, um site calvinista “explica” este texto da seguinte maneira:
“O que esses príncipes resistiram não foi a vontade de Deus, mas a vontade dos profetas, e foi da vontade de Deus que isso acontecesse"[17]
Eu raramente fico tão horrorizado em ler uma “interpretação” bíblica tão defeituosa como fiquei ao ler este texto. Sinceramente, eu não sabia se ria ou se chorava. Os calvinistas querem mesmo que creiamos que era da vontade de Deus que os príncipes rejeitassem os profetas, quando o texto claramente diz que Jeová enviou os profetas exatamente com a intenção de reconduzi-los a Ele! Deus quer reconduzir o Seu povo a Ele, envia profetas para este fim, mas na verdade o que ele queria mesmo enviando os profetas era exatamente o contrário!
Ainda bem que eu não vi a “interpretação” deles deste texto:
“Se vocês estiverem dispostos a obedecer, comerão os melhores frutos desta terra; mas, se resistirem e se rebelarem, serão devorados pela espada" (Isaías 1:19-20)
O propósito e a vontade de Deus estão postos diante deles, mas o homem pode resistir à vontade divina rebelando-se contra ele, tanto quanto pode dispor seus corações para obedecê-lo. Quando um rei fazia o que era mau, era dito que ele “não preparou o seu coração para buscar ao Senhor” (2Cr.12:14). Israel da época de Moisés experimentou bem aquilo que significa resistir a Deus. Eles haveriam de cair pela espada “porque não quiseram obedecer ao Senhor” (Nm.14:43). A Moisés, Deus disse:
“Então disse o Senhor a Moisés: Quanto tempo essas pessoas rejeitam a mim? E por quanto tempo não crêem em mim, com todos os sinais que fiz no meio deles? Vou atacá-los com a peste e deserdá-los” (Números 14:11-12)
Não importa o tamanho da boa vontade divina nem os sinais que são feitos para que o homem creia, mesmo assim ele ainda pode rejeitar o Senhor. Para alguns, essa pode ser uma dura realidade: Deus é justo e imparcial. Ele dá oportunidade para todos, mas nem todos o aceitam. Aqueles que foram salvos, foram salvos porque Deus os salvou. Aqueles que não foram salvos, não foram salvos porque resistiram a Deus. A glória na salvação recai sobre Deus, e a culpa na condenação recai sobre o homem.
• É ilógico Deus chamar alguém que já predestinou à perdição
Esta incoerência calvinista, em “chamar” alguém que ele já preordenou à morte, também causou indignação aos renomados autores antigos e contemporâneos. O filósofo cristão Dr. William Lane Craig, por exemplo, afirmou:
“A chamada ao arrependimento e salvação na visão calvinista é insincera. Trata-se de um fingimento, pois mesmo que Deus envie um chamado universal, ele mesmo não deseja que todos respondam a este chamado e não dá a sua graça salvadora às pessoas para habilitá-las a responderem a este chamado”[18]
John Wesley, em seu conhecido sermão “Graça Livre”, também não poupou palavras ao se referir a esta incongruência. Ele disse:
“Isso postulado, que seja observado que essa doutrina representa nosso abençoado Senhor Jesus Cristo, o virtuoso, ‘o único legítimo Filho do Pai, cheio de graça e verdade’, como um hipócrita, um fraudador do povo, um mentiroso. Porque não pode ser negado que ele, em todo lugar, fala como se desejasse que todo homem pudesse ser salvo. Então, dizer que ele não deseja isso, é representá-lo como um mero hipócrita, um dissimulador. Não pode ser negado que as graciosas palavras que saem de sua boca é cheia de convites a todo pecador. Dizer, então, que ele não pretende salvar todos os pecadores, é representá-lo como um mentiroso vulgar. Você não pode negar que ele diz ‘Venham até mim, todos vocês que estão cansados e oprimidos’”[19]
Ele ainda declarou:
“Se, então, você diz que ele chama aqueles que não podem vir; aqueles que ele sabe, são incapazes de vir; aqueles que ele pode tornar capazes de vir, mas não fará isso; como é possível descrever insinceridade maior? Você o representa como um escarnecedor de suas impotentes criaturas, oferecendo o que ele nunca pretendeu dar. Você o descreve como dizendo uma coisa, e significando outra; como fingindo um amor que ele nunca teve. Ele, em ‘cuja boca não estava a malícia’, você torna cheia de decepção, insinceridade; então, especialmente, quando a cidade se fez noite, Ele lamentou sobre ela e disse: ‘Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, e tu não quiseste’. Agora, se você diz, eles poderiam, mas, ele não poderia, você o representa (o qual, quem pode ouvir?) como lamento de crocodilos chorões; lamentando sobre a vítima que ele mesmo tinha condenado à destruição!”[20]
É realmente difícil exaurir do Deus calvinista uma visão de complexo de bipolaridade, pois ele “chama” quem já condenou antes da criação do mundo (tornando o chamado inútil e insincero) e diz que deseja a salvação de pessoas que não tem a mínima oportunidade de serem salvas, pois ele já predeterminou o contrário a respeito delas. Também é difícil conciliar isso com um Calvino que dizia repetidamente que Deus ignora, amaldiçoa, cega e endurece os não-eleitos precisamente para que eles não alcançassem a salvação, para depois “chamar” um não-eleito e “desejar” a salvação dele.
Sem as aspas no chamar e no desejar, tal chamado e desejo no calvinismo não tem sentido algum. Se Deus chama, é porque ele deu uma chance do pecador correspondender ao chamado, recebendo a graça. Se Deus “não quer a morte do pecador, mas, antes, que se converta e viva” (Ez.33:11), é porque ele dá oportunidade de salvação a todos. Sem essa oportunidade, qualquer chamado ou desejo para a salvação se torna frívolo, inútil, fútil e inconsistente, além de falso, irracional, ilógico e insincero.
• A possibilidade de arrependimento é necessária
É por essa mesma razão que a possibilidade de arrependimento é necessária. Isso não significa que Deus vai fazer com que todos se arrependam (o que significaria crer no lugar da pessoa e violar a liberdade dela em escolher crer ou descrer), mas significa que Deus irá dar oportunidades reais para todos se arrependerem. Em outras palavras, Deus não diz para ninguém se arrepender a não ser que seja possível que essa pessoa se arrependa.
Na Bíblia vemos inúmeros convites gerais ao arrependimento, tais como:
“O Espírito e a noiva dizem: Vem. Aquele que ouve diga: Vem. Aquele que tem sede, venha, e quem quiser receba de graça a água da vida” (Apocalipse 22:17)
“E dizendo: O tempo está cumprido, e é chegado o reino de Deus. Arrependei-vos, e crede no evangelho” (Marcos 1:15)
“Convertei-vos a mim e eu me converterei a vós” (Zacarias 1:3)
“Pois assim diz o Senhor à casa de Israel: Buscai-me, e vivei” (Amós 5:4)
“Buscai o bem, e não o mal, para que vivais; e assim o Senhor, o Deus dos Exércitos, estará convosco, como dizeis” (Amós 5:14)
“Buscai ao Senhor e a sua força; buscai a sua face continuamente” (1ª Crônicas 16:11)
Mas aquele que é provavelmente o texto mais preciso acerca disso e que proclama a universalidade do arrependimento é o texto de Atos 17:30, que diz:
“Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica aos homens, que todos, em toda a parte, se arrependam” (Atos 17:30)
Como Wesley observa, este texto diz respeito a “todo homem, em todo lugar, sem qualquer exceção, tanto ao lugar quanto à pessoa”[21]. Mas como “todos, em toda a parte”, se arrependerão se não lhes é dada sequer uma oportunidade de crer? Se eles já foram de antemão predestinados ao inferno, eles não poderão se arrepender de jeito nenhum, ou senão o decreto divino a respeito deles seria anulado. No calvinismo, quem Deus não elegeu arbitrariamente antes da fundação do mundo não pode se arrepender e crer. Ele não tem uma chance, nunca terá uma oportunidade real. Chamar todos ao arrependimento, incluindo os milhares de não-eleitos, é vão.
É difícil entender Tiago dizendo para que os pecadores: “limpem as mãos; e vocês, que têm a mente dividida, purifiquem o coração” (Tg.4:8), a não ser que ele pensasse que fosse realmente possível que o pecador limpasse suas mãos e purificasse seu coração. A coisa era tão séria que “todo aquele que não buscasse o Senhor, o Deus de Israel, deveria ser morto, gente simples ou importante, homem ou mulher” (2Cr.15:13). Será que Deus mandou matar aqueles a quem ele não deu uma oportunidade de viver?
Deus certa vez disse:
“Irei para meu lugar, até que ponham no coração e busquem minha face” (Oseias 5:15)
Qual a razão para Deus se afastar e só decidir voltar depois do arrependimento a não ser que este arrependimento fosse possível? Se ele não era, tudo não passou de um teatro aqui. Deus se afastou por causa de pecados que ele predeterminou que acontecessem, e não voltaria mais até que ele decretasse o arrependimento. Em outras palavras, Deus os abandona e volta para eles não em função de escolhas humanas, mas de decretos divinos.
Porém, a Bíblia sempre ensina que o arrependimento é possível para todos os pecadores. Deus disse:
“Não falei em segredo, nem em lugar algum escuro da terra; não disse à descendência de Jacó: Buscai-me em vão; eu sou o Senhor, que falo a justiça, e anuncio coisas retas” (Isaías 45:19)
O chamado de Deus, como ele mesmo diz, não é em vão. Seria absurda uma declaração dessas caso fosse impossível que muitas pessoas aceitassem este chamado, porque teoricamente já estariam predestinadas ao inferno. Este chamado seria obviamente “vão” para elas. Não valeria nada, da mesma forma que de nada adianta tentar falar aos ouvidos de um surdo, ou gesticular diante de um cego. Completamente vão.
Deus também disse:
“Este mandamento que hoje te prescrevo não é obscuro, nem posto ao longe, nem situado no céu, mas está junto de ti, em tua boca e em teu coração, para que o cumpras” (Deuteronômio 30:11-14)
A linguagem passa a ideia de que o cumprimento da vontade de Deus, que inclui o arrependimento para a salvação, não é algo distante, difícil de ser colocado em prática, muito menos impossível. É algo que meramente necessita de uma boca para falar e de um coração para crer. É um arrependimento perto e possível para todos, e não um arrependimento distante e impossível para muitos. Devemos mais uma vez lembrar que chamados como estes são gerais, incluindo aos que se perderam, como todo o contexto aponta. Deus não estava falando apenas com os “eleitos”, com uma pequena parcela dentre o povo, mas com todo o povo.
Infelizmente, Calvino mais uma vez se distanciou dos ensinamentos bíblicos neste ponto e tentou conciliar sua teologia com a Bíblia através de malabarismos lógicos que nada mais eram senão vãs tentativas de negar o óbvio. Ele chegou até mesmo a dizer que “por estas injunções, ‘se quiserdes’, ‘se ouvirdes’, o Senhor não nos atribui a livre capacidade de querer ou ouvir”[22], e que “mediante a pregação exterior, são todos chamados ao arrependimento e à fé, entretanto, nem a todos é dado o espírito de arrependimento e fé”[23].
Ele não compreendia que sua própria lógica tornava o chamado inútil e a impossibilitava a correspondência ao convite do arrependimento. Ele até mesmo negava que Deus deseja a salvação de todos, contrariando o óbvio ensinamento bíblico que permeia o Antigo (Ez.18:23; 18:32; 33:11) e o Novo (2Pe.3:9;1Tm.2:3,4) Testamento. Ele disse:
“Junto aos habitantes de Nínive e de Sodoma, segundo o testemunho de Cristo, a pregação do evangelho e os milagres teriam produzido mais fruto que na Judéia. Se Deus quer que todos venham a ser salvos, como acontece, pois, que aos míseros, que mais preparados estariam para receber a graça, ele não abra a porta do arrependimento?”[24]
Ele não apenas faz violência aos textos bíblicos que claramente dizem que Deus deseja a salvação de todos, como também faz adivinhação ao presumir que a oportunidade de arrependimento não existia para os habitantes de Nínive e Sodoma. A porta do arrependimento tanto se abriu para Nínive que muitos dali foram salvos com a pregação de Jonas (Jn.3:10), e a razão pela qual o mesmo não aconteceu com Sodoma foi pela desobediência dos próprios sodomitas, e não por negligência divina. Só porque o evangelho daria mais frutos em Nínive e Sodoma do que teve na Judeia não significa que os ninivitas e sodomitas não tiveram uma chance, significa apenas que os judeus rejeitaram a deles.
Por incrível que pareça, este absurdo calvinista desperta a fúria inclusive de outros calvinistas. Spurgeon, um dos mais famosos, se colocou fortemente contra Calvino nesta questão e negou veementemente que o Senhor não procurasse a salvação de alguém que não foi salvo. Ele disse:
“E com amor divino Ele o corteja como um pai corteja seu filho, estendendo Suas mãos e clamando: ‘Tornai-vos para mim, tornai-vos para mim’. ‘Não’, diz um doutrinário. ‘Deus nunca convida todos os homens a tornarem-se para Ele, mas somente alguns indivíduos’. Pare, senhor! Isto é tudo o que você sabe. Nunca leu sobre a parábola aonde é dito: ‘Meus bois e cevados já estão mortos, e tudo já está pronto; vinde às bodas’. E os que foram convidados não quiseram ir. E nunca leu que todos começaram a dar desculpas e foram punidos porque não aceitaram o convite? Então se os convites não são feitos para todos, mas somente para quem iria aceitá-lo, como esta parábola pode ser real?”[25]
Ele também rejeitava a tese de Calvino, na qual Deus não estende suas mãos a um não-eleito. Contra isso, ele escreveu:
“É provável que o Senhor continue estendendo Suas mãos até que seus cabelos fiquem grisalhos, ainda convidando-o continuamente – e talvez quando estiver beirando a morte Ele ainda dirá: ‘Vinde a mim, vinde a mim’. Se porém você ainda insistir em endurecer seu coração, se ainda rejeitar Jesus, eu imploro-lhe que não permita que nada o faça imaginar que continuará sem punição!”[26]
Spurgeon tanto sabia das consequencias de suas declarações que naquele mesmo sermão afirmou que muitos ali iriam acusá-lo de ensinar o arminianismo, mas preferia contradizer seu próprio sistema de crenças (calvinismo) do que contradizer a Bíblia. Logicamente, Armínio também rejeitou essa crença de Calvino, que impossibilita o arrependimento a um não-eleito. Ele disse que “isto imputa hipocrisia a Deus, como se, em Sua exortação à fé voltada para tais, Ele exige que estes creiam em Cristo, a quem, entretanto, Ele não propôs como Salvador deles”[27].
Ele também declarou:
“Eu gostaria que me explicassem como Deus pode, de fato, sinceramente desejar que alguém creia em Cristo, a quem Ele deseja que esteja apartado de Cristo, e a quem Ele decretou negar as ajudas necessárias à fé; pois isso não é desejar a conversão de ninguém”[28]
Wesley também exclamava dizendo que “não posso crer que haja uma alma na terra que não tenha, nem nunca tenha tido, a possibilidade de escapar da condenação eterna”[29]. Norman Geisler, embora se autodenomine “calvinista moderado”[30], é bem arminiano nesta questão. Ele diz que “seria tanto fraudulento quanto absurdo para Deus ordenar a todos que se arrependam, se não providenciou salvação para todos”[31]. Ele também defende vigorosamente que existe oportunidade de salvação para todos, dizendo:
“A oportunidade de se arrepender é um dom de Deus. Ele graciosamente concede-nos a oportunidade de voltar de nossos pecados, mas o arrependimento cabe a nós. Deus não irá se arrepender por nós. O arrependimento é um ato de nossa vontade, apoiado e encorajado pela graça”[32]
Contra a tese calvinista de que o “dever” se arrepender não implica em “poder” se arrepender, ele afirma[33]:
“O calvinista extremado crê que dever não implica poder. A responsabilidade não implica capacidade de responder. Mas, se é assim, por que deveria me sentir responsável? Por que deveria me preocupar quando seguir determinado caminho está fora de meu controle?”[34]
É também somente pela possibilidade de crer que um descrente pode ser justamente condenado por descrer, e apenas porque ele teve a possibilidade de se arrepender que ele pode ser acusado por sua rejeição ao arrependimento. O calvinismo, se levado às suas consequencias lógicas, anula a justiça de Deus e a responsabilidade do homem. Mas há ainda um outro elemento importante que eles afogam no caráter divino para defenderem suas teorias. Iremos analisá-lo agora.
• O amor de Deus implica em oferecer salvação a todos
Este último fator que nos leva a crer que Deus possibilita a salvação de todos chama-se amor. Pense, por um momento, que o famoso versículo de João 3:16 tivesse sido escrito assim:
“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que ele determinou que alguns poucos devessem crer e fossem salvos”
Qualquer pessoa minimamente sensata logo irá perceber que este versículo, embora plenamente compatível com a ótica calvinista, corrompe não apenas o versículo original, mas também o sentido do verso original. Quando a Bíblia diz que Deus “amou o mundo de tal maneira”, a expressão “de tal maneira” nos leva a crer em algo grande, magnífico, em uma completa expressão de amor. Mas a expressão seguinte, que diz que Deus possibilitou a salvação apenas de alguns poucos, se contrapõe a esta visão de amor universal, declarada no início do verso.
É por isso que Calvino disse Deus impede o acesso à salvação a muitos, e que os árduos problemas que ele reconhece existirem só podem ser explicados pela “eleição”:
“Porque, se é notório que pelo arbítrio de Deus suceder que a salvação é oferecida gratuitamente a uns, enquanto que outros são impedidos de seu acesso, aqui prontamente emergem grandes e árduas questões, as quais não podem ser explicadas de outra forma, se as mentes pias têm por definido o que se impõe manter a respeito de eleição e predestinação”[35]
Um calvinista logo irá perceber que nós estamos mais uma vez apelando para o amor de Deus e irá lançar mão do argumento de que Deus não tem a mínima obrigação de salvar a todos, que o homem chegou àquela condição por sua própria culpa e que não há nada no homem que o faça merecer a salvação. Tudo isso é verdade. Se analisarmos a questão apenas pela ótica da soberania, Deus não teria nenhuma razão para oferecer salvação a todos. Se analisarmos pela ótica arminiana, o homem pecou por sua própria culpa e responsabilidade. E, de fato, concordamos que não há nada no homem que o faça merecedor da salvação.
Mas espere. Embora tudo isso seja verdade e que não haja nada no homem para que este mereça a salvação, há algo em Deus que o move a oferecer salvação a todos indistintamente. E isto que está em Deus e que o leva a estender suas mãos ao homem perdido, ainda que não seja rigorosamente obrigado a isso e mesmo que o homem tenha caído por sua própria culpa, chama-se amor.
Deus amou o mundo de tal maneira que, mesmo sem ser obrigado a isso, ainda que o homem tenha caído em ruína por sua própria culpa, e não obstante que não haja nada no homem que mereça a salvação, ele decidiu enviar Seu Filho unigênito para oferecer salvação a todos, a fim de que todo aquele que nele crê seja salvo. Norman Geisler apresenta esse mesmo conceito dentro de uma analogia ilustrativa. Ele disse:
“Suponhamos que um fazendeiro descubra três garotos afogando-se numa lagoa de sua propriedade, onde há cartazes indicando claramente que é proibido nadar ali. Em seguida, percebendo a patente desobediência, diz ele consigo mesmo: ‘Eles violaram a proibição, e trouxeram sobre si mesmos as conseqüências merecidas pela desobediência’. Poderíamos, talvez, concordar com o raciocínio, até este ponto. Contudo, se o fazendeiro prosseguir, dizendo: ‘Portanto, não farei qualquer esforço para salvá-los’, imediatamente imaginaríamos que está faltando alguma coisa em seu amor. Suponhamos, então, que por qualquer capricho inexplicável ele diria o seguinte: ‘Não tenho a mínima obrigação de salvar um deles, mas por mera bondade de meu coração salvarei um deles e deixarei os outros dois afogar-se’. Em tal caso, certamente diríamos que o amor deste homem é parcial. É certo que não é este o quadro que encontramos na Bíblia”[36]
Infelizmente, este fazendeiro e seu amor parcial é o reflexo do que os calvinistas pensam a respeito de Deus e seu amor limitado a alguns. Como Laurence Vance bem observa, o Deus calvinista é tipicamente como aquele sacerdote e aquele levita que passaram pelo homem caído no chão e quase morto, mas não fizeram nada a respeito dele:
“O Deus do calvinista é como o sacerdote e o levita que ‘passaram de largo’ pelo homem ‘meio morto’ na parábola do bom samaritano (Lc 10.31-32). E pior ainda, Deus também seria como os salteadores que ‘o despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto’ (Lc 10.30). Dizer que, porque Deus voltou e ‘moveu-se de íntima compaixão, e, aproximando-se, atou-lhe as feridas’ (Lc 10.33-34), ele devia ser louvado por sua graça e misericórdia é absurdo. Sobre o samaritano que ‘aproximou-se’ (Lc 10.34), o Senhor ordenou: ‘Vai, e faze da mesma maneira’ (Lc 10.37). Certamente o Senhor pratica o que recomenda”[37]
O Deus calvinista é como o sacerdote e o levita da parábola. Vê o homem caído no chão, quase morrendo, e passa dali sem tomar nenhuma providência a respeito, e sem oferecer salvação àquele homem, por não ter sido um “eleito”. Na verdade, o Deus calvinista também determinou que os salteadores passassem por ali e espancassem aquele homem, como vimos no capítulo sobre o determinismo.
Já o Deus arminiano é como aquele samaritano que passou por ali e atou-lhe as feridas, sem se importar se aquele homem era “eleito” ou “não-eleito”, a despeito de qualquer eleição arbitrária na eternidade. O Deus arminiano amou o mundo todo de tal maneira que ofereceu a salvação para todos, e não para alguns. Ele não é com alguns o que o sacerdote e levita eram na parábola, e com outros o que o samaritano era na parábola. Ele é como o bom samaritano para com todos, indistintamente.
Ele pratica aquilo que ele ordena que nós pratiquemos. Ele não é como alguém que nos manda fazer uma coisa mas faz outra. Não é como o “siga o que eu digo, mas não siga o que eu faço”. Ele realmente é o exemplo a ser seguido, e seus ensinamentos nada mais são do que o reflexo de seu caráter perfeito. Como Walls e Dongell assinalam, “torna-se sem sentido alegar que Deus quer salvar a todos ao passo que insistimos que Deus se abstém de tornar a salvar possível a todos. O que devemos fazer com um Deus que pede para que façamos aquilo que ele mesmo não faz?”[38]
Geisler corretamente observa que os calvinistas analisam apenas o atributo da justiça de Deus, à parte do atributo do amor. Ele disse:
“Deus é mais que justo; também é todo-amoroso. E verdade que todos são condenados com justiça por causa de seus pecados. Mas é errado presumir que um atributo de Deus (justiça) opere isolado de outro (amor). Não havia nada no ser humano pecaminoso que justificasse qualquer tentativa de salvá-lo, mas havia alguma coisa em um Deus sem pecado que fez isso (a saber, seu infinito amor)”[39]
Olson também pergunta: “Que amor se recusa a salvar aqueles que poderiam ser salvos, uma vez que a salvação é incondicional? Que compaixão se recusa a prover pela salvação quando ela poderia ser fornecida?”[40] Para Geisler, se o calvinismo é verdadeiro, então a verdadeira razão pela qual alguém é condenado é porque Deus não a ama. Ele disse:
“Segue-se, em análise final, que a razão pela qual alguns vão para o inferno é que Deus não os ama e não lhes dá o desejo de ser salvos. Mas, se a razão real pela qual vão para o inferno é que Deus não os ama, não os regenera irresistivelmente e não lhes dá a fé para que creiam, então a falha deles em crer resulta verdadeiramente da falta de amor de Deus por eles”[41]
Essa é uma conclusão difícil de ser tolerada, mas é onde deveríamos chegar no caso da graça divina ser realmente como os calvinistas imaginam que ela seja.
• Amor forçado é contradição de termos
Finalmente, é importante ressaltar que, se o livre-arbítrio não conta (pois ele não existe), então a vontade do homem é violentada por Deus para que ele creia, a despeito do que ele creria caso tivesse o livre-arbítrio de aceitar ou rejeitar a graça divina. Como a graça é irresistível, torna-se impossível que o homem resista à graça. Ele sempre terá que aceitá-la, e essa aceitação não provém da própria vontade do homem, mas da eleição divina na eternidade.
É como um homem que força a sua amada a aceitar seu pedido de casamento, em contraste com um que a convida a se casar mas que a deixa livre para aceitar ou rejeitar este convite, dependendo da vontade dela. O problema é que amor forçado é contradição de termos, e que a Bíblia, por todos os lados, apresenta uma noção contrária ao uso de uma força irresistível para convencer alguém de algo. Já vimos o texto de Apocalipse 3:20, que mostra o oposto:
“Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a Minha voz, e abrir a porta, entrarei na sua casa, e cearei com ele, e Ele comigo” (Apocalipse 3:20)
Deus bate na porta como um cavalheiro, esperando que a pessoa livremente decida abrir a porta do seu coração a ele. Ele não arromba, não chega entrando sem pedir permissão nem violenta a vontade do indivíduo para que ele abra. Até o apóstolo Paulo dizia a Filemom que “não quis fazer nada sem a sua permissão, para que qualquer favor que você fizer seja espontâneo, e não forçado” (Fm.14). Jesus, antes de curar o paralítico, perguntou-lhe:
“Um dos que estavam ali era paralítico fazia trinta e oito anos. Quando o viu deitado e soube que ele vivia naquele estado durante tanto tempo, Jesus lhe perguntou: ‘Você quer ser curado?’” (João 5:5,6)
Embora fosse óbvio que um paralítico iria querer ser curado e igualmente óbvio que a cura seria o melhor para ele, Jesus não foi operando a cura sem a permissão ou livre vontade do indivíduo. Ele primeiro perguntou se ele queria ser curado, e só depois de receber resposta positiva é que ele realizou a cura. Cristo nunca agiu contrário ao livre-arbítrio de uma pessoa, mas por meio do livre-arbítrio da pessoa. Ele não faz as coisas de forma unilateral e forçada.
Outro exemplo disso se encontra no relato da cura dos homens cegos:
“Dois cegos estavam sentados à beira do caminho e, quando ouviram falar que Jesus estava passando, puseram-se a gritar: ‘Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de nós!’ A multidão os repreendeu para que ficassem quietos, mas eles gritavam ainda mais: ‘Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de nós!’ Jesus, parando, chamou-os e perguntou-lhes: ‘O que vocês querem que eu lhes faça?’ Responderam eles: ‘Senhor, queremos que se abram os nossos olhos’. Jesus teve compaixão deles e tocou nos olhos deles. Imediatamente eles recuperaram a visão e o seguiram” (Mateus 20:30-34)
Era lógico que aqueles cegos estavam procurando Jesus porque queriam ver. Mesmo assim, ao invés de Jesus já ir curando, ele primeiro perguntou o que eles queriam que ele fizesse, e só depois dos cegos expressarem a vontade deles é que Cristo de fato agiu com a cura. O tempo todo vemos Deus agindo mediante a vontade do homem, e não forçando a vontade do homem. C. S. Lewis já sabia disso quando disse:
“O Irresistível e o Indiscutível são duas armas que a própria natureza de Seu esquema O proíbe de utilizar. Subjugar simplesmente a vontade humana... não Lhe serve. Ele não pode arrebatar. Pode apenas convidar”[42]
Um amor forçado e irresistível destroi um relacionamento. Um relacionamento só existe onde alguém é livre para amar ou não amar, e decide, por livre e espontânea vontade, amar. Mas se a vontade de um ser é violentada para que ele só possa amar, não há mais nenhum relacionamento sincero aqui. Ray Dunning bem observa que, “se os homens são peças que o Soberano Mestre em xadrez as move de forma unilateral e até excêntrica, o caráter pessoal da relação humano-divina é efetivamente eliminado”[43].
Roger Olson pergunta:
“Se os homens escolhidos por Deus não podem resistir à oferta de um relacionamento correto com Deus, que tipo de relacionamento é esse? Uma relação pessoal pode ser irresistível? Tais predestinados são, de fato, pessoas em um relacionamento assim?”[44]
Sobre a perspectiva de Armínio, ele também afirma:
“A preocupação de Armínio não residia apenas em não fazer de Deus o autor do pecado, mas também que a relação divino-humana não fosse meramente mecânica, mas genuinamente pessoal. Para ele, a doutrina do calvinismo rígido reduziu a pessoa a ser salva a um autômato e a relação divino-humana ao nível de relacionamento entre uma pessoa e um instrumento. Portanto, ele teve que dar espaço à resistência, mas ele não o fez de maneira tal a sugerir que a pessoa sendo salva se tornasse a causa da salvação”[45]
Chales Cameron também acentua que “a graça de Deus não é certa força irresistível (...) é uma Pessoa, o Espírito Santo, e em relacionamentos pessoais não pode haver a subjugação de uma pessoa por outra”[46]. Quem fala melhor do que ninguém sobre isso é Norman Geisler. Ele diz que “o uso de força irresistível da parte de Deus contra Suas criaturas livres seria uma violação tanto da caridade de Deus como da dignidade dos seres humanos. Deus é amor. O verdadeiro amor jamais abre caminho à força. Amor forçado é rapto, e Deus não é um raptor!”[47]
Para ele, “uma força irresistível usada por Deus nas criaturas livres seria violação tanto do amor de Deus quanto da dignidade do ser humano. Deus é amor. E o verdadeiro amor nunca força ninguém, seja externa, seja internamente. ‘Amor forçado’ é contradição de termos”[48]. Se o calvinismo for verdadeiro, "o fato de alguma pessoa não ter escolhido amar, adorar e servir a Deus não fará nenhuma diferença para Ele. Ele simplesmente ‘se apodera’ dos que escolhe com seu poder irresistível e força-os a entrar em seu Reino, contra a vontade deles”[49].
Por fim, ele afirma:
“A ‘graça irresistível’ viola o livre-arbítrio daquele que não a deseja, pois Deus é amor (Jo 4.16), e o verdadeiro amor é persuasivo, mas nunca coercitivo. Jamais poderá haver um casamento forçado no céu. Deus não é como B. F. Skinner que, em sua teoria da conduta, modifica as pessoas fazendo que ajam contra a própria vontade”[50]
• Se a graça é resistível, a salvação é por obras?
Um argumento dado pelos calvinistas que é comumente usado na tentativa de depor contra a graça resistível é que, se a graça não é irresistível, a salvação seria por obras e o homem seria o seu próprio salvador. Eles costumam frequentemente dizer que, se a graça é oferecida ao homem e este pode recusá-la, o homem se torna o causador da própria salvação, e não Deus. Este argumento por si só já começa estranho, pois, se a lógica funciona assim mesmo, então até no calvinismo Deus não seria o salvador.
Se o fato de o homem aceitar a graça no arminianismo torna o homem salvador de si mesmo, então por que o fato de o homem aceitar a graça no calvinismo não torna o homem salvador de si mesmo? Ambos ensinam que a graça é derramada, a diferença é que um crê que essa graça é resistível e o outro crê que essa graça é irresistível. Se o fato de o homem aceitar a graça no calvinismo faz de Deus o salvador, por que o fato de o homem aceitar a graça no arminianismo não faz de Deus o salvador?
O calvinista poderá afirmar que é porque no arminianismo o homem pode rejeitar a graça. Isso é verdade. Porém, o que isso muda? A coisa continua igual para os que aceitam. Os que aceitam irresistivelmente são salvos no calvinismo, e os que aceitam persuasivamente são salvos no arminianismo. Nada muda para os que aceitam, exceto o fato de que um aceitou pelo uso da força, enquanto o outro aceitou por persuasão. Como diz Olson, “um presente que é rejeitado ainda é um presente, se for livremente recebido. Um presente recebido livremente não é um presente menor do que um recebido sob coerção”[51].
Fazendo uma analogia, é como se um pai comprasse um presente para dois filhos. Para um deles, chamado João, ele compra o presente e força que aceite o presente. Para outro deles, chamado Jacob, ele compra o presente e o oferece, deixando escolhê-lo livremente. Somente um demente diria que no primeiro caso o presenteador é o pai, e que no segundo caso o filho se presenteou a si mesmo. Da mesma forma, ninguém em sã consciência diria que no primeiro caso o presente foi um presente, enquanto no segundo caso o presente deixou de ser um presente e se tornou um mérito.
Em ambos os casos, a graça continua sendo graça. Em ambos os casos, o salvador permanece sendo Deus. A aceitação por parte do homem, seja ela resistível ou irresistível, forçada ou não-forçada, não faz do homem salvador de si mesmo, o que confronta a lógica e o bom senso. Por incrível que pareça, esse argumento inútil dos calvinistas tem sido usado contra os arminianos desde a época de Armínio. E Armínio também usou analogias para mostrar o defeito das acusações calvinistas. Ele disse:
“Um homem rico concede, a um pobre e faminto mendigo, esmolas com as quais ele será capaz de manter a sua família e a si mesmo. O fato de o mendigo estender as suas mãos para receber as esmolas faz com que elas deixem de ser um presente genuíno? Pode-se dizer com propriedade que ‘as esmolas dependem parcialmente da liberalidade do Doador e parcialmente da liberdade do favorecido’, embora este último não fosse receber as esmolas a menos que ele as tivesse recebido estendendo sua mão?”[52]
Comentando este trecho, Olson diz:
“Usando-se a analogia de Armínio do rico e do mendigo, seria normal dizer que a aceitação, por parte do mendigo, do dinheiro dado pelo homem rico foi um fator decisivo na sobrevivência de sua família? Quem diria tal coisa? Toda a atenção neste caso se concentraria no benfeitor e não no pobre receptor da benfeitoria”[53]
Norman Geisler também emprega analogia semelhante para mostrar a irracionalidade da acusação calvinista. Ele declara:
“O ato de receber um dom pela fé não é mais meritório do que é o de um mendigo ao receber uma ajuda. E uma lógica estranha a que assevera que o recebedor ganha crédito por receber uma dádiva, e não o doador! O ato de fé em receber o dom incondicional de Deus não granjeia nenhum mérito para o recebedor. Ao contrário, todo louvor e glória vão para o Doador de ‘toda boa dádiva e todo dom perfeito’ (Tg 1.17)”[54]
Assim como seria estúpido dizer que um mendigo que estende as mãos para receber uma esmola dada por graça a recebeu “por suas boas obras” ou que causou a própria doação, assim também é ridículo alegar que o ato de aceitar a graça é uma “boa obra” que “causa a salvação” e a torna “centrada no homem”. Como diz Olson, “o verdadeiro arminianismo dá a Deus toda a glória e aos humanos, nenhuma; a salvação é inteiramente de Deus mesmo se as pessoas devam escolher livremente não resistir a ela. Mas mesmo essa habilidade de não resistir à graça salvífica é de Deus; ela não faz parte do equipamento natural da humanidade”[55].
Ele também acrescenta que “a decisão da fé não é causa meritória ou eficaz da salvação; a única causa é Cristo e sua morte. A decisão da fé é apenas a causa instrumental de salvação (como o ato de descontar um cheque), ao fazer isso, o dom é ativado. Mas isso não acrescenta nada ao dom ou o torna menos gratuito. Os arminianos acreditam que as pessoas são salvas apenas pela morte de Cristo e não por suas próprias decisões ou ações”[56].
O próprio Olson também empregou diversas analogias para simplificar o entendimento da salvação no prisma arminiano. Uma delas é a de um homem caído em um poço. Ele diz:
“Uma ilustração seria um homem caindo inconsciente em um poço. Deus chama o homem e lhe oferece ajuda. O homem recobra a consciência. Deus despeja água no poço e encoraja o homem ferido a flutuar na água e sair do poço. Tudo o que o homem tem a fazer é deixar que a água o eleve não lutando contra ela ou não se prendendo ao fundo do poço. Essa é uma analogia (embora rudimentar e simples) da graça preveniente. Como pode uma pessoa resgatada nestes moldes vangloriar-se desse resgate? Tudo o que ela fez foi relaxar e deixar que a água (a graça) a salvasse”[57]
Outra analogia que ele faz é a de um depósito de um cheque:
“Imagine um aluno que esteja passando fome e prestes a ser despejado de seu dormitório por falta de dinheiro. Um professor bondoso dá a esse aluno um cheque de R$ 1.000,00 - o suficiente para que ele pague seu aluguel e coloque uma boa quantidade de comida em sua dispensa. Imagine, pensando mais além, que o aluno que foi resgatado leve o cheque até o banco, assine e deposite o cheque em sua conta (o que faz com que seu extrato fique com R$ 1.000,00 positivos). Imagine também que o aluno então começa a andar pelo campus se gabando de que ele mereceu receber a quantia de R$ 1.000,00. Qual seria a resposta das pessoas caso soubessem a verdade acerca da situação? Eles acusariam o aluno de ser miserável e ingrato. Mas suponha que o aluno diga: ‘Mas o fato de eu endossar o cheque e o depositar em minha conta é o fator decisivo para que eu conseguisse o dinheiro, então eu fiz uma boa obra que mereceu, ao menos, parte do dinheiro, não mereci?’ Ele seria ridicularizado e possivelmente ainda seria ignorado pelos demais por ser uma pessoa insensata”[58]
Todas essas analogias, e muitas outras que poderíamos passar aqui, mostram o quão ridícula é a acusação calvinista de que no arminianismo a salvação é centrada no homem, por obras ou pelo mérito humano. Em todas elas, o Doador da graça permanece sendo Deus, e o fator e a causa da salvação permanece sendo a graça divina. O homem se vangloriar por aceitar a graça é algo tão estúpido quanto um mendigo se orgulhar de ter recebido uma esmola, como se o fato de ele ter estendido as mãos para recebê-la implicasse em algum mérito pessoal pelo qual ele possa se ostentar.
• Últimas considerações
Biblicamente, o debate sobre o modus operandi da graça é indiscutível. Deus estende a sua graça salvífica a todos, universalmente, mas nem todos aceitam esta graça. Deus não força o recebimento da graça nem violenta o livre-arbítrio do ser humano. Embora a graça seja oferecida a todos, nem todos a recebem, e esta recusa é a causa da condenação deles. Assim, o motivo pelo qual alguém é condenado não é por uma recusa ou omissão de Deus em não oferecer a graça, e sim por uma recusa e omissão do homem em não aceitá-la.
Paz a todos vocês que estão em Cristo.
Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli.
[1] Metodista Remne. Graça Preveniente. Disponível em: <http://remne.metodista.org.br/conteudo.xhtml?c=9730>
[2] VANCE, Laurence M. O outro lado do calvinismo.
[3] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 43.
[4] Institutas,2.4.3.
[5] Institutas, 3.22.10.
[6] Institutas,2.3.11.
[7] Institutas,2.3.5.
[8] Institutas,2.5.3.
[9] Institutas,2.5.4.
[10] Institutas,2.3.10.
[11] Esta frase deve ser entendida dentro do prisma humano da vontade natural, no sentido de que o homem, por sua própria vontade libertada pela graça preveniente, não desejaria a Cristo, mas este “move” a vontade do homem na direção que ele quer, fazendo com que ele queira. Neste sentido, é “contra” a vontade do homem, pois é algo que o homem não faria se Deus não violentasse a vontade dele.
[12] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 109.
[13] OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. Editora Reflexão: 2013, p. 256.
[14] Lemke, "A Biblical and Theological Critique of Irresistible Grace”, in Whosoever Will: A Biblical-Theological Critique of Five-Point Calvinism, ed. David L. Allen and Steve W. Lemke (Nashville, TN: Broadman & Holman, 2010), p. 120.
[15] OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. Editora Reflexão: 2013, p. 257.
[16] OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. Editora Reflexão: 2013, p. 256.
[17] RADUNZ, Marcelo Flavio. II Crônicas 24:19 não afirma que Deus teve a intenção de fazer algo e a vontade humana resistiu? Disponível em: <http://pelocalvinismo.blogspot.com.br/2014/02/ii-cronicas-2419-nao-afirma-que-deus.html>
[18] CRAIG, William Lane. Doutrina da Salvação – Parte 3 – Arminianismo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NIshOGmcl5k#t=123>
[19] WESLEY, John. Graça Livre, XIV.
[20] WESLEY, John. Graça Livre, XIV.
[21] WESLEY, John. Graça Livre, XI.
[22] Institutas,2.5.10.
[23] Institutas, 3.22.10.
[24] Institutas, 3.24.15.
[25] SPURGEON, Charles H, Sermão sobre: “A Soberana Graça de Deus e a Responsabilidade do Homem”.
[26] SPURGEON, Charles H, Sermão sobre: “A Soberana Graça de Deus e a Responsabilidade do Homem”.
[27] ARMINIUS, “Examination of Dr. Perkins’s Pamphlet on Predestination”, Works, v. 3, p. 313.
[28] ARMINIUS, “Examination of Dr. Perkins’s Pamphlet on Predestination”, Works, v. 3, p. 320.
[29] Wesley, John. The Works of The Reverend John Wesley, volume VII, New York, 1835, p. 480-481.
[30] Como já vimos no capítulo 1 deste livro, o “calvinismo moderado” de Geisler nada mais é senão um outro nome para o arminianismo clássico.
[31] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 237.
[32] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 219.
[33] Geisler também se opõe à costumeira resposta calvinista em torno do cumprimento da lei. Ele disse: “Os calvinistas extremados freqüentemente citam o mandamento de Deus de guardar a Lei como ilustração do ato de ordenar o impossível. Mas na verdade não é realmente impossível guardar a Lei, do contrário Jesus não teria sido capaz de guardá-la (v. Mt 5.17,18; Rm 8.1-4). Qualquer coisa que Deus ordene é possível fazer, seja com a própria força dada por Deus, seja com outra qualquer, dada por sua graça especial” (GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 309).
[34] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 154.
[35] Institutas, 3.21.1.
[36] GEISLER, Norman. Predestinação e Livre-Arbítrio: Quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana. Editora Mundo Cristão: 1989, p. 90-91.
[37] VANCE, Laurence M. O outro lado do calvinismo.
[38] Walls and Dongell, Why I Am Not a Calvinist, p. 55.
[39] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 250.
[40] OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. Editora Reflexão: 2013, p. 79.
[41] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 55-56.
[42] C. S. Lewis, As Cartas do Coisa-Ruim (Edições Loyola, 1982), p. 42.
[43] DUNNING, H. Ray. Grace, Faith, and Holiness. Kansas City, Mo.: Beacon Hill, 1988, p. 257-258.
[44] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 48.
[45] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 212.
[46] CAMERON, Charles M. “Arminius – Hero or Heretic?” Evangelical Quartely, n. 3. v. 64, 1192. p. 225.
[47] GEISLER, Norman. Predestinação e Livre-Arbítrio: Quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana. Editora Mundo Cristão: 1989, p. 90.
[48] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 55.
[49] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 53.
[50] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 54.
[51] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 210.
[52] ARMINIUS, “The Apology or Defence of James Arminius, D.D.”, Works, v. 2, p. 52.
[53] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 215.
[54] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 225.
[55] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 202.
[56] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 290.
[57] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 206.
[58] OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. Editora Reflexão: 2013, p. 255-256.
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